sexta-feira, 15 de março de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

PEC das Drogas traz retrocesso para segurança

O Globo

Texto do Senado incentiva o encarceramento, que fornece mão de obra para facções nos presídios

Prepara-se no Congresso um enorme retrocesso para enfrentar um problema que merece ser tratado com maturidade, não com preconceito e demagogia. A Proposta de Emenda à Constituição conhecida como PEC das Drogas, aprovada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, é um equívoco. Para a saúde e para a segurança pública. Primeiro, porque vai contra todo o conhecimento acumulado sobre como tratar dependentes. Segundo, porque é um incentivo ao encarceramento em massa, problema que a Lei Antidrogas de 2006 tentou resolver, embora tenha ficado no meio do caminho.

A PEC piora uma legislação já ruim e pretende gravar o erro no artigo 5º da Constituição. A proposta considera crime a posse e o porte de qualquer quantidade de droga, “observada a distinção entre o traficante e o usuário pelas circunstâncias fáticas do caso concreto”. Ora, a legislação atual também foi aprovada com o objetivo de não prender usuários, mas fracassou ao não estabelecer critérios para isso, gerando um vácuo jurídico hoje em debate no Supremo Tribunal Federal (STF).

Sem parâmetros objetivos, as “circunstâncias fáticas” sempre dependerão da interpretação de cada policial ou juiz. Pelo que a realidade mostra, jovens, negros e pobres costumam ser tratados como traficantes e presos, mesmo que flagrados com pequenas quantidades — ao contrário daqueles noutra condição socioeconômica.

O resultado são as cadeias abarrotadas com gente que não deveria estar lá. Dos 650 mil presos no Brasil, 28% foram encarcerados com base na Lei Antidrogas, a maior parte portando pequenas quantidades. Uma pesquisa do Ipea mostrou que, se houvesse limite de 25 gramas para consumo pessoal, 27% dos condenados por porte de maconha poderiam sair da cadeia. Se o limite fosse de 150 gramas, seriam 59%.

A indefinição da quantidade que separa traficantes e usuários só interessa a facções criminosas, pois mantém um fluxo constante de mão de obra a ser aliciada nos presídios, onde ninguém sobrevive se não aceitar ser soldado do tráfico. O traficante deve ser tratado na forma da lei. O dependente precisa ser encarado como caso de saúde pública. O governo tem de oferecer tratamento ao vício e desenvolver campanhas para desestimular o uso de drogas. Não faz sentido encarcerar usuários ao lado de homicidas, assaltantes, estupradores, pedófilos e outros criminosos que precisam ser afastados do convívio social.

Devido à legislação omissa e à falta de regulação sensata, mesmo quem usa Cannabis medicinal é por vezes tratado como criminoso. “Aqueles que plantam podem ser presos só porque tentam conseguir o óleo com objetivos terapêuticos”, afirma Bruno Pegoraro, presidente do Instituto de Pesquisas Sociais e Econômicas da Cannabis (Ipsec). O acesso acaba restrito a produtos importados e caros. Até pesquisas importantes esbarram na burocracia.

Há uma agenda positiva que o Congresso deveria seguir no tema. É essencial definir a quantidade que distingue traficante de usuário — em debate no Supremo —, regulamentar o plantio do cânhamo (planta da maconha sem psicoativo que traria enorme oportunidade ao agronegócio) e estabelecer regras para o cultivo para fins medicinais. Em vez disso, levados por uma mentalidade tacanha, retrógrada e equivocada, os parlamentares apostam numa visão cujo fracasso está demonstrado — e será inevitável.

Lula enfrenta obstáculos para estender os negócios brasileiros na África

O Globo

Presidente encontrou dificuldades para convencer líderes africanos a ampliar os espaços para o Brasil

A viagem recente do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à África chamou a atenção pela declaração absurda comparando Israel a Adolf Hitler, enquanto outro tema de interesse nacional mais imediato passou despercebido: o distanciamento do Brasil em relação ao continente africano. Ao passar pela Etiópia, onde foi recepcionado pelo primeiro-ministro Abiy Ahmed, Lula irritou-se com o cancelamento em cima da hora de encontros bilaterais. Não compareceu ao jantar oferecido por Ahmed aos participantes da reunião de cúpula da União Africana, onde discursou. Ainda que os episódios de desencontro possam ter sido fortuitos, seu acúmulo deixa claro que o Brasil tem perdido relevância na África.

Nos governos anteriores de Lula, o continente era prioridade, como parte da visão geopolítica de estender a influência brasileira sobre países em desenvolvimento. O Brasil estabeleceu representações diplomáticas África afora, e países africanos foram beneficiados com financiamentos do BNDES para importar serviços do Brasil — basicamente, contratando empreiteiras brasileiras para executar grandes obras (até hoje alguns desses empréstimos não foram saldados). Depois do governo Michel Temer, a África perdeu qualquer prioridade na gestão de Jair Bolsonaro.

O tempo passou, as empreiteiras foram pilhadas em casos de corrupção pela Operação Lava-Jato e saíram de cena. A privatização da Eletrobras e os limites impostos à União na administração da Petrobras tiraram espaço de manobra do Planalto para fazer diplomacia por intermédio das estatais. Mas não é necessário um país usar as empresas públicas para executar uma política externa eficaz, que atenda a seus interesses.

Lula tem dito que há espaço para que a iniciativa privada aproveite oportunidades de negócios na África. Mas não se vê, da parte do governo, uma política estruturada que dê apoio às empresas brasileiras. O Brasil de hoje é diferente daquele que Lula já governou no passado. As oportunidades que havia na infraestrutura africana vêm sendo aos poucos aproveitadas por China e Índia, que adotaram uma estratégia agressiva para ocupar os espaços disponíveis.

Cabe a Lula entender que essas mudanças geopolíticas, embora possam frustrar pretensões mais ambiciosas, ainda mantêm abertas as portas para negócios. É preciso saber usá-las. Ele tem a seu dispor o mesmo Itamaraty, adestrado em defender políticas de Estado, portanto capaz de aconselhá-lo a não repetir erros. A dificuldade de encontrar espaço na agenda dos líderes africanos não deve desencorajá-lo. O Brasil ainda tem muitos interesses no continente e muito a lhes oferecer.

OMC continua à deriva e perde relevância

Valor Econômico

Sem a OMC e as suas regras, vale a lei da selva no comércio global

O comércio mundial continua sem um árbitro global e não se sabe quando voltará a ter um. É o que se infere a partir do fracasso da última reunião ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), na semana passada, em Abu Dhabi. Não houve acordo sobre novos avanços em termos de liberalização das trocas globais. E nem quanto à retomada do mecanismo de solução de controvérsias, o que significa que a OMC não tem mais o poder de fazer cumprir as regras atuais de comércio.

A reunião ministerial, da qual participam todos os países-membros, é o órgão decisório da OMC. O principal ponto da já acanhada agenda do encontro era tentar proibir os subsídios à pesca, que levam à pesca excessiva nos oceanos. Mas não houve acordo. Os países que mais subsidiam a pesca de longa distância, incluindo EUA, China, Japão e a União Europeia, bloquearam o tema. Assim como a Índia, que quer isenção, pois alega que a sua pesca é essencialmente artesanal.

O debate sobre liberalização do comércio agrícola está completamente travado pela exigência da Índia de isenção das restrições de subsídios à formação de estoques governamentais de alimentos. Sem acordo nessa questão, o restante da agenda é bloqueado pelos indianos.

A reforma do mecanismo de solução de controvérsias da OMC também não avançou. O órgão de apelação da entidade, uma espécie de tribunal que julga as disputas no comércio global, está paralisado desde 2019 devido à recusa dos EUA de indicar juízes. Os EUA alegam que o órgão vinha extrapolando as suas funções ao criar jurisprudência em suas decisões. Isso começou com Donald Trump e continua com Joe Biden.

O único mísero resultado da reunião foi a prorrogação da moratória de cobrança de impostos sobre transmissão de bens por meio eletrônico, que interessava aos EUA e às grandes empresas de tecnologia.

No âmbito plurilateral, isto é, em negociações nas quais participa quem quiser e não são obrigatórias para todos os países, houve alguns entendimentos, como em facilitação de investimentos. Mas os EUA não estão dentro, e países como Índia e África do Sul não querem permitir que acordos plurilaterais façam parte do arcabouço da OMC.

A OMC foi uma importante conquista do chamado sistema multilateral, isto é, um modelo de governança global por meio de negociações e consenso. Esse sistema ajudou a abrir o comércio e a impulsionar a economia mundial nos últimos 30 anos. A OMC é o único órgão internacional no qual as grandes potências são obrigadas a seguir as decisões colegiadas e não têm poder exclusivo de veto.

Mas a crescente tensão entre EUA e China e o avanço de ideologias políticas nacionalistas pelo mundo colocaram o sistema multilateral em uma crise existencial e reduziram o apetite por mais abertura comercial. A OMC foi perdendo a capacidade de impor as suas regras e acabou sendo esvaziada. Essa crise do multilateralismo é ampla e está afetando outras áreas, como as negociações climáticas.

Não há a perspectiva de esse cenário melhorar no curto prazo. A oposição dos EUA à OMC continua mesmo com Biden. Os democratas, que tradicionalmente são mais protecionistas, não têm apetite para abertura no comércio exterior. E a alternativa nos EUA é o republicano Donald Trump, que detesta a OMC e o sistema multilateral. Ele quer que os EUA estejam livres para usar como bem entenderem o seu poderio, seja militar ou econômico. É a política do “Make America Great Again” (a chamada Maga, isto é, tornar os EUA grandes novamente) e do America First (os EUA primeiro). Na atual campanha eleitoral, Trump já prometeu aplicar tarifas punitivas contra produtos chineses e adotar uma sobretaxa contra todas as mercadorias importadas pelos EUA, ignorando as regras comerciais da OMC.

Sem a OMC e as suas regras, vale a lei da selva no comércio global, o que é bom para os países mais ricos e poderosos e ruim para países como o Brasil. As exportações brasileiras, sobretudo as do agronegócio, ficariam sujeitas ao sabor do protecionismo nos parceiros comerciais. Isso reduziria a previsibilidade das exportações, o que prejudicaria os investimentos e, ao final, resultaria em menor crescimento econômico. Ainda sem a OMC, países com tendência protecionista, incluindo o Brasil, poderiam se tornar ainda mais protecionistas, gerando uma espiral para baixo no comércio mundial, que ficaria cada vez mais controlado pelos governos nacionais. A reatividade da Índia, por exemplo, não é nova no sistema comercial global. Mas costumava ser contrabalanceada pela iniciativa e pela liderança dos EUA e da UE. Mas agora Washington se desinteressou, o que deixa a OMC à mercê da rejeição sistemática dos indianos.

A OMC não vai acabar, pois isso seria um enorme retrocesso na governança global. No entanto, está cada vez mais perdendo relevância. A reunião ministerial deixou claro que o sistema internacional de comércio precisa ser reformado, mas não há acordo sobre como reformá-lo. O custo econômico dessa paralisia acabará sendo elevado.

Senado ameaça piorar a já ruim Lei de Drogas

Folha de S. Paulo

Proposta reforça graves defeitos da guerra aos entorpecentes, uma política nefasta que deveria dar lugar à legalização

Faz tempo que se conhece um grave equívoco da Lei de Drogas, aprovada pelo Congresso Nacional em 2006: ao endurecer as penas para traficantes e amenizar a punição de usuários, a legislação não estipulou critérios objetivos capazes de diferenciar um do outro.

O resultado foi trágico para o país. Milhares de brasileiros terminaram atrás das grades com base na nova norma, mas diversos estudos mostraram que o encarceramento em massa passou longe de representar algum ganho em termos de segurança pública.

Um levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), por exemplo, analisou 41 mil casos de 2019 e concluiu que em apenas 13% deles havia menção a facções criminosas. Além disso, em 80% dos processos, os réus ficaram presos de forma preventiva.

Não é difícil imaginar que, uma vez inseridos num sistema penitenciário subumano, muitos desses prisioneiros acabaram reforçando as hostes do mesmo crime organizado que se pretende combater.

Tampouco é difícil imaginar as características mais comuns a essas pessoas: são, em sua maioria, homens, jovens, negros e pobres.

Que a desigualdade social tenha se convertido em critério para a aplicação da Lei de Drogas, eis uma chaga indecorosa com a qual nenhum Estado democrático de Direito deveria conviver. Daí por que o Supremo Tribunal Federal, desde 2015, vê-se instado a dar sua palavra sobre o assunto.

Ocorre que o Judiciário não constitui o foro adequado para a definição de parâmetros sobre uso e tráfico de drogas; esse tipo de ajuste compete ao Legislativo, e o julgamento do STF avança perigosamente sobre o terreno do ativismo.

A reação do Senado, no entanto, foi buscar um retrocesso. A Comissão de Constituição e Justiça da Casa aprovou proposta que inclui na Constituição termos ainda semelhantes aos da Lei de Drogas.

Em outras palavras, os senadores intentam reforçar os mesmíssimos erros da norma de 2006 —o que tornará quase impossível qualquer avanço do Brasil nessa seara.

Diversos países desenvolvidos já aprenderam que a guerra às drogas não faz sentido sob nenhum ponto de vista. O fracasso da repressão se expressa também em cifras: um estudo estimou que, em 2017, São Paulo e Rio de Janeiro somaram R$ 5,2 bilhões em gastos com esse tipo de política, sem que sejam perceptíveis ganhos de segurança.

Para romper com esse ciclo irracional, é preciso ir além de corrigir —de verdade— a lei. É preciso promover a legalização gradual dos entorpecentes e tratar o tema sob a ótica da saúde pública. Pois uma coisa é certa: se há vencedores dentro da atual abordagem, eles estão nas facções criminosas.

Imprensa protegida

Folha de S. Paulo

Lei europeia que defende a atividade revela instabilidades da democracia liberal

Mesmo que a Europa seja conhecida pela proteção à liberdade de imprensa, o Parlamento Europeu se viu instado a aprovar, na quarta (13), uma lei para salvaguardar ainda mais essa atividade.

Entre os motivos para a medida estão a ascensão da direita populista, tecnologias de vigilância e a moderação de conteúdo em redes sociais pelas chamadas big techs.

Segundo o Índice de Liberdade de Imprensa, da ONG Repórteres sem Fronteiras, verifica-se uma crise global no setor que atinge também a Europa. Em 2013, entre 180 países, 25 tinham pontuação máxima (85 a 100), sendo 19 do continente; em 2023, só 8 atingiram o topo —todos europeus.

Até nações conhecidas pela defesa do jornalismo —Suíça, Áustria, Bélgica e Alemanha— decaíram e, na lista do ano passado, não estavam mais entre as melhores.

No Leste Europeu, sobre o qual pesa uma história de domínio soviético e russo, a situação piorou, principalmente na Polônia e na Hungria, chefiadas por governos de direita populista e autoritária.

Desde que o reacionário Andrzej Duda chegou ao poder, em 2015, a posição polonesa no ranking caiu da 18ª para a 57ª em 2023. Já a húngara despencou do 23º para o 72º lugar entre 2010 e 2023, durante o longo período em que o autocrata Viktor Orbán comanda o país.

Governos autoritários têm usado softwares espiões para vigiar profissionais da imprensa. De acordo com o diploma aprovado, isso só será possível em casos de investigação de crimes graves e com autorização judicial independente.

Em relação à moderação de material jornalístico por plataformas como Facebook e Instagram, os meios de comunicação devem ser notificados da intenção de eliminar ou restringir seu conteúdo e terão 24 horas para responder. Ademais, ainda podem acionar o Comitê Europeu dos Serviços de Comunicação Social, caso se sintam lesados.

A ação do Parlamento Europeu é meritória, dada a essencialidade da liberdade de imprensa para a liberdade política. Que tal lei ainda seja necessária evidencia como a estabilidade da democracia liberal nunca está garantida. É preciso protegê-la continuamente.

Uma balbúrdia desnecessária

O Estado de S. Paulo

Não faz sentido o STF declarar inconstitucional a criminalização da maconha nem o Congresso constitucionalizar a criminalização das drogas. Melhor seria deixar a Constituição fora disso

A Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou na quarta-feira a proposta de emenda à Constituição (PEC) que inclui a criminalização da posse e porte de drogas na Constituição. A iniciativa é uma manifesta demonstração de força ante o avanço do julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), ora suspenso por um pedido de vista, de um Recurso Extraordinário sobre o tema. Com cinco votos favoráveis ao recurso e três contrários, a Corte está a um voto de declarar inconstitucional a criminalização do consumo de maconha.

Fabricou-se assim um novo confronto entre o Judiciário e o Legislativo, contraproducente para uma repactuação social a propósito da ordem jurídica adequada às drogas e deletério para a harmonia entre os Poderes. Não é preciso entrar no mérito da controvérsia. Os equívocos de ambos os lados estão na forma de conduzi-la.

Os votos prevalecentes na Corte se fundamentam no princípio constitucional da inviolabilidade da intimidade e da vida privada. Condutas individuais não nocivas a outros não seriam passíveis de punição. Os votos contrários alegam o dever constitucional do Estado de zelar pela saúde de todos. Nesse sentido, não se questiona, por exemplo, a constitucionalidade de sanções a quem não utiliza o cinto de segurança ou restrições a quem não toma vacinas.

Mas o fato é que o Congresso já havia pactuado uma solução de compromisso na Lei de Drogas de 2006. O legislador distinguiu o traficante do usuário e, se não descriminalizou de jure o consumo, o descriminalizou de facto, praticamente despenalizando essa conduta. Pela lei vigente, ninguém pode ser preso pelo porte para consumo. As penas se restringem a advertência, serviços comunitários ou medidas educativas.

E, no entanto, foi a própria recusa do Judiciário em cumprir a vontade do legislador que detonou esta guerra institucional. Juízes punitivistas passaram a condenar de maneira arbitrária o mero porte como tráfico. A lei, de fato, não estabelece um critério objetivo de quantidade para distinguir usuário de traficante. Mas nem precisaria. Todos os anos surgem novas drogas e velhas drogas são alteradas, e não faria sentido fixar em lei uma quantidade para cada uma delas. Bastaria à Corte estabelecer orientações judiciais, periodicamente recicladas e adaptadas a essas constantes mudanças, para garantir a isonomia na aplicação da lei.

Ao invés disso, o STF está a ponto de descriminalizar o porte de maconha e estabelecer critérios de quantidade com força de lei. Como nem a Constituição nem a Lei de Drogas diferenciam a maconha de outras substâncias ilícitas, ao fabricar essa nova legislação das drogas a Corte estará atropelando competências do Legislativo.

Ferido em seus brios, o Senado agora move uma contraofensiva que só criará mais problemas. A rigor, a PEC não altera as disposições da Lei de Drogas e mantém a distinção entre usuário e traficante. Mas Constituições deveriam se restringir a consagrar direitos fundamentais dos cidadãos e princípios gerais para o funcionamento do Estado. O resto deveria ser deixado à legislação ordinária, que pode, com muito mais flexibilidade, adaptar-se às constantes repactuações de uma sociedade dinâmica – como, por exemplo, a propósito de seu entendimento sobre a ordem jurídica que deve regular as drogas. A prolixidade constitutiva de uma Constituição excessivamente extensa e pormenorizada já causa entraves demais a essas repactuações. Não faz nenhum sentido engessá-las ainda mais com mais um dispositivo de cunho penal.

Nem o Legislativo deveria constitucionalizar a criminalização das drogas nem o Judiciário deveria declarar inconstitucional a criminalização de uma droga específica. Melhor seria que ambos deixassem a Constituição fora disso, e o Judiciário se restringisse a aplicar a lei, estabelecendo critérios objetivos para garantir que os juízes a apliquem com isonomia, e deixando à sociedade e seus representantes eleitos a tarefa de sedimentar consensos sobre a regulação das drogas. É hora de o Supremo e o Congresso baixarem as armas e darem um passo atrás.

Vareio

O Estado de S. Paulo

Um mês após fugirem de presídio federal no RN que deveria ser de segurança máxima, os dois criminosos ligados ao Comando Vermelho seguem humilhando as forças de segurança do Estado

No dialeto do futebol, diz-se que um time goleado de forma humilhante pelo adversário tomou um “vareio”. Pois é isso, um vareio, o que as forças de segurança estão levando dos dois prisioneiros que há um mês, completado ontem, fugiram de onde não deveriam fugir, a Penitenciária Federal de Mossoró (RN), que supostamente seria de segurança máxima.

Para marcar a data e tentar dar um ar de seriedade ao engajamento do governo federal na caçada aos fugitivos, o ministro da Justiça e da Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, viajou ao local e fez um sobrevoo pela região de Baraúna, cidade na divisa entre o Ceará e o Rio Grande do Norte onde se acredita que os bandidos ainda possam estar. Não se sabe ao certo o que Lewandowski viu lá de cima, mas, ao pisar em terra firme, o ministro afirmou que as buscas estariam “se desenvolvendo com êxito”.

Ora, como é óbvio para qualquer cidadão minimamente sensato, êxito seria o retorno de Rogério Mendonça e Deibson Nascimento, dois perigosíssimos criminosos condenados, para trás das grades – e desta vez em local um tanto menos expugnável do que a penitenciária potiguar. Lewandowski, no entanto, parece se contentar com bem menos. Na visão do ministro, o suposto bom andamento das buscas pelos fugitivos pode ser atestado pelo fato de eles estarem “cercados” em um “perímetro amplo e variável”. Seja lá qual for essa área, o certo é que Rogério e Deibson seguem dando dribles da vaca nas autoridades, que perderam seus rastros nos últimos dias. Um vexame para as forças de segurança do Estado.

Durante uma entrevista concedida logo após uma reunião com policiais envolvidos na recaptura, Lewandowski deixou transparecer a sua conhecida inexperiência na área da segurança pública – problema, justiça lhe seja feita, que diz menos sobre ele do que sobre seu chefe. Aos repórteres, o ministro assegurou que as forças do Estado “estão empenhadas na operação” para levar os dois criminosos ligados ao Comando Vermelho de volta ao cárcere. Que alívio, pois imagine o leitor se acaso não estivessem.

O presidente Lula da Silva, por sua vez, prometeu “ampliar o espaço de investigação”. De acordo com o petista, em entrevista ao SBT, “vai chegar um momento em que você não vai continuar procurando (na mesma região). Mas, por enquanto, a gente tem que ficar lá (em Baraúna) porque a sociedade está assustada. E são dois bandidos perigosos”. A obviedade não esconde o fato de que o governo está zonzo. Do ponto de vista operacional, talvez possa fazer sentido aumentar o número de ações de recaptura mais ostensivas. Mas força bruta sem cérebro tem pouca serventia.

Ações de inteligência têm sido privilegiadas pelas forças de segurança nos âmbitos federal e estadual? Se sim, um mês desse baile que os dois bandidos estão dando num enorme contingente de agentes sugere que elas têm sido ineficazes. Decerto os fugitivos estão recebendo ajuda, mas era esperado que o Estado, do alto de seu poderio humano e material, fosse capaz de romper essa rede de favorecimento. Sobretudo porque, como afirmou o próprio ministro Lewandowski, os criminosos estariam cercados.

A essa altura, as autoridades deveriam se preocupar menos com a criação de factoides e mais com o planejamento e ações de inteligência que possam cortar o afluxo de recursos que têm permitido que Rogério e Deibson prossigam foragidos. A cada dia que passam fora do cárcere, é bom enfatizar, os criminosos humilham o Estado brasileiro.

Evidentemente, a recaptura dos dois fugitivos deve ser a prioridade zero do governo federal. Está-se lidando com criminosos de altíssima periculosidade, condenados por crimes de sangue, entre outros, e vinculados a uma das mais poderosas organizações criminosas do País. Mas logo o ministro Lewandowski terá de dar à sociedade as respostas às perguntas que permanecem em aberto, algumas delas óbvias.

Como Rogério e Deibson conseguiram escapar com tanta facilidade de um presídio que deveria ser de segurança máxima? Qual o grau de envolvimento de servidores públicos com a fuga? Como o governo federal pretende fazer com que essa fissura vergonhosa no sistema penitenciário federal não sirva de incentivo para que outros detentos acautelados em prisões federais não se sintam encorajados a fazer o mesmo?

É mais que intervencionismo

O Estado de S. Paulo

Governo tem maioria na Petrobras, mas isso não o autoriza a subjugar a empresa, como Lula quer

O presidente da Petrobras, Jean Paul Prates, disse que o governo, enquanto acionista majoritário e controlador da empresa, tem direito a orientar o voto de seus representantes no Conselho de Administração da companhia. Isso, na avaliação dele, não pode ser chamado de intervencionismo. “É legítimo que o Conselho de Administração se posicione orientado pelo presidente da República e pelos seus auxiliares diretos que são os ministros”, afirmou Prates, por meio de suas redes sociais.

O argumento é absolutamente capcioso. O governo, de fato, detém a maioria dos papéis da Petrobras, posição que lhe dá assentos mais do que suficientes no colegiado para fazer valer suas decisões sem dificuldade perante os acionistas minoritários. O que se espera, no entanto, é que esse poder vise sempre ao melhor interesse dos acionistas, inclusive da própria União, que seria a maior beneficiada pelo pagamento dos dividendos extraordinários da companhia.

A questão de fundo, no entanto, nunca foram os dividendos em si, mas o que isso sinaliza sobre as intenções do governo e o futuro da companhia. Se a retenção de 100% dos dividendos extraordinários da Petrobras fosse um consenso, o próprio Prates teria sido o primeiro a apoiar a proposta. Por que, então, um executivo indicado ao cargo pelo presidente Lula da Silva optou por se abster quando teve de se posicionar a respeito dela?

Ao contrário do que Prates disse nas redes sociais, a decisão não foi “meramente de adiamento e reserva”. Lula deixou muito claro que preferia aplicar esses recursos em investimentos como sondas e navios, embora esse dinheiro só possa ser utilizado para pagar dividendos no futuro, na recompra de ações ou na absorção de prejuízos.

Se os recursos têm aplicações tão limitadas e o governo seria o maior beneficiário, o que justificaria a posição do governo de retê-los, senão a implícita intenção de usar de sua maioria no Conselho justamente para derrubar essas restrições?

Não se trata de especulação sem sentido. Se Lula da Silva não tem pudor algum em pressionar pela mudança da diretoria da Vale, empresa que nem sequer pertence ao governo, por que hesitaria em fazer o mesmo com a Petrobras, na qual a União efetivamente possui a maioria das ações?

O que Lula da Silva quer é fazer da Petrobras um braço de atuação de seu governo sem ter de prestar contas a ninguém por isso. É bom lembrar que, entre os minoritários, estão trabalhadores que investem suas economias na petroleira para financiar uma empresa cujos ganhos podem proporcionar uma aposentadoria mais tranquila e confortável no futuro – e não para ajudar o presidente a faturar politicamente com o dinheiro alheio.

A experiência prévia não permite ingenuidade sobre a forma como o governo instrumentaliza as empresas de capital misto a desperdiçar recursos em projetos que não param em pé em vez de apostar naquilo que garante retorno, rende impostos, gera riqueza e cria empregos. É, sim, intervencionismo, mas é também apego ao poder sem limites.

O que tira o sono dos brasileiros

Correio Braziliense

No Brasil, as estimativas indicam que cerca de 70 milhões de pessoas apresentam problemas de sono

Se pensarmos que um dos principais distúrbios do sono — além da insônia, claro — pode causar infarto do miocárdio, derrame cerebral, obesidade, hipertensão, arritmia cardíaca, depressão ou até mesmo acidentes domésticos e de trânsito, no caso de adultos e idosos, é fundamental que um especialista no assunto seja acionado, o que raramente ocorre na vida do brasileiro.

O distúrbio citado é a apneia obstrutiva do sono (AOS), aquela "parada" no processo de respiração em repouso. Ela pode chegar a 15 segundos de interrupção e pode ocorrer inúmeras vezes, gerando uma série de prejuízos à saúde, dos quais os mais sérios estão no início do texto, mas há ainda outros efeitos, como irritabilidade, ronco (o sintoma mais "audível"), dores de cabeça ao acordar, engasgo, sonolência durante o dia, dores de cabeça matinais, agitação e boca seca.

A questão é que esse esforço para recuperar a respiração e, consequentemente, os batimentos cardíacos e a pressão arterial, sobrecarrega o coração. Já imaginou isso a longo prazo? É preciso lembrar que as crianças também podem ter apneia. E aí os prejuízos são: maior risco de apresentar deficit de atenção, dificuldade de aprendizado, hiperatividade, além da possibilidade de o distúrbio alterar a curva de crescimento.

Outra má notícia é que, no Brasil, as estimativas indicam que cerca de 70 milhões de pessoas apresentam problemas de sono, sendo que a maior parte delas sequer sabe que tem o problema e, mesmo sabendo, não procura tratamento adequado.

Isso sem falar no trabalhador que fica horas no transporte público, ou mesmo em seu carro, parado no trânsito das grandes cidades. Gente que se desdobra em mais de um emprego para arcar com as despesas da rotina. Que vai do trabalho para os estudos. Aquela mulher, como a grande maioria das brasileiras, que tem uma jornada dupla ou tripla de trabalho, chega em casa cansada e ainda tem de cuidar dos filhos e de tarefas domésticas. Difícil ter tempo para dormir o suficiente para descansar e retomar a rotina no dia seguinte.

Hoje, no Dia Mundial do Sono (15/3), vejamos algumas informações. O período ideal de um sono de qualidade por noite varia entre sete e oito horas, levando em consideração as diferenças de cada indivíduo em termos de idade, estilo de vida e atividades diárias. Bebês e adolescentes (a maior parte) são considerados "dormidores longos", ou seja, precisam de mais tempo para se sentirem ativos para o dia seguinte — nove, 10 ou 11 horas de sono. Já os curtos, geralmente, são idosos, mas também há adultos, crianças e outras pessoas que não necessariamente precisam de muitas horas na cama todos os dias.

Os distúrbios do sono, e aí inclui-se a apneia obstrutiva, deveriam fazer parte do calendário nacional do Ministério da Saúde e obrigatoriamente serem considerados problemas de saúde pública. Se passamos uma parte significativa do dia dormindo — pelo menos um terço —, por que não investirmos em oferecer atendimento gratuito a esses pacientes, com centros e equipamentos específicos que analisem as horas maldormidas?

O assunto merece entrar na pauta de discussões e nos investimentos em saúde. Algumas iniciativas existem, como o direito do trabalhador apneico grave de receber auxílio-doença. Mas essa é a forma adequada de lidar com o doente? Não seria melhor não deixar a doença se instalar? Essa é só mais uma das patologias das quais o brasileiro sofre e não recebe a atenção merecida.


 

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