Alta no crédito deve ser encarada com cautela
O Globo
Brasil não alcançará crescimento sustentado
com base no consumo, mas no investimento e no equilíbrio fiscal
A alta no crédito ao consumidor vem sendo
apresentada como uma das notícias econômicas positivas do primeiro trimestre. A
concessão de empréstimos para comprar bens cresceu 18% no período de 12 meses
encerrados em fevereiro, maior patamar dos últimos cinco anos. Embora haja bons
motivos para comemorar o feito, o governo deveria tomar cuidado para não chegar
a conclusões erradas. Em administrações anteriores do PT, acreditou-se que
bastava irrigar a economia com dinheiro barato para fazer o PIB crescer. O que
se viu foi uma expansão insustentável. Se não aprender com os erros do passado,
o governo arrisca cair na mesma armadilha.
O recente salto no crédito tem múltiplas causas. Com a queda da inflação e dos juros, os consumidores hoje pagam menos pelos empréstimos. O desemprego em queda, a renda em alta e o programa Desenrola permitiram que sustassem velhas dívidas e pudessem contrair novas. Quatro em dez brasileiros dizem estar dispostos a ampliar gastos com bens como móveis ou eletrodomésticos nos próximos 12 meses, segundo pesquisa da Confederação Nacional da Indústria (CNI). Os efeitos deverão se fazer sentir mais no segundo semestre. Esse é um dos fatores que têm elevado as previsões de crescimento da economia para 2024. Analistas ouvidos pelo Banco Central preveem hoje um PIB 1,9% maior neste ano (há quatro semanas, a previsão era 1,8%).
A mudança em marcha no mercado de crédito ao
consumo, embora alvissareira, deve ser encarada com cautela. A fragilidade
financeira das famílias diminuiu, mas ainda é alta. A inadimplência das pessoas
físicas começou a cair no ano passado. Mas, como destacaram os economistas
Paula Marina Sarno e Rudrá Balmant de Moura em artigo recente, são declínios
modestos.
A última medida que o governo deveria tomar
nessa conjuntura é aquecer artificialmente o mercado de crédito ao consumo. Ao
que parece, a intenção é justamente essa. Em manifestações públicas, o
presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem demonstrado o desejo de estender o
crédito consignado aos trabalhadores informais (um desafio, pois os juros mais
baixos cobrados nessa modalidade são garantidos por salários fixos). O governo
cogita também abrir linhas de empréstimo para beneficiários do Bolsa Família e
permitir o uso dos recursos de fundos de previdência complementar e seguros
pessoais como garantia em empréstimos.
Todas essas ideias refletem uma visão
distorcida de como funciona a economia, mal crônico nas gestões petistas. O
crescimento sustentado de que o Brasil precisa só virá pela via do
investimento, que registrou a marca constrangedora de 16,5% do PIB no ano
passado (ante necessidade estimada em 25%). As empresas só investem mais quando
enxergam condições favoráveis em prazos mais longos. É esse o objetivo que deve
ser perseguido.
Para alcançá-lo, Lula poderia aproveitar o
bom momento oferecido pelo cenário de expansão no crédito e adotar uma agenda
que garantisse um ambiente de negócios menos hostil (a começar pela
regulamentação da reforma tributária). A parte mais crítica dessa agenda é o
equilíbrio fiscal. Enquanto persistir dúvida sobre a solvência das contas
públicas, não haverá como resgatar a confiança dos investidores no futuro. Essa
é a tarefa crítica do governo. Não há atalhos para um país atingir o
crescimento econômico sustentado, como Lula já deveria ter aprendido.
Contaminação de ianomâmis por mercúrio é
efeito da omissão do Estado
O Globo
Estudo constatou deterioração cognitiva e
problemas neurológicos associados ao garimpo ilegal
A crise humanitária dos ianomâmis ainda está
longe de resolvida. A população de 30 mil indígenas, distribuída entre Roraima e Amazonas,
na fronteira do Brasil com a Venezuela, continua a conviver com o garimpo
ilegal, apesar da operação promovida na região pelo governo federal em janeiro
do ano passado. A própria ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara,
reconheceu o fracasso.
Os ianomâmis têm pagado um preço alto pela
exploração clandestina do ouro. Uma pesquisa da Fiocruz sobre
o efeito nos indígenas do mercúrio usado nos garimpos constatou graves
deficiências cognitivas entre crianças da etnia. Os índices cognitivos baixos
encontrados pelos pesquisadores — Q.I. médio de 68, quando o esperado seria
100, numa escala que vai até 120 — podem ser resultado da contaminação por
mercúrio, da desnutrição infantil ou de outros problemas sanitários. Em
qualquer caso, estão vinculados aos garimpos ilegais.
O estudo é o terceiro do grupo de pesquisa
Ambiente, Diversidade e Saúde, da Fiocruz, que analisa a contaminação por
mercúrio em indígenas, vulneráveis por viverem próximos a rios e se alimentarem
de peixes contaminados. Uma equipe de 22 pessoas fez avaliações médicas,
neurológicas, nutricionais e sociais. Nos exames neurológicos, também em
adultos, 30% dos resultados ficaram abaixo do normal.
De acordo com o coordenador do estudo, Paulo
Basta, apenas uma pesquisa contínua que acompanhasse o desenvolvimento das
crianças forneceria as causas exatas das perdas cognitivas. Mesmo assim, ele
considera que há “indícios robustos” de que a causa básica dos problemas
neurológicos é a exposição crônica ao mercúrio. É sintomático que todas as 287
amostras de cabelo de indígenas de nove aldeias ninam, no Alto Rio Mucajaí, em
Roraima, indicassem a presença de mercúrio. O mesmo ocorreu com todos os peixes
coletados para a pesquisa, com apoio do Instituto Socioambiental (ISA). As
crianças com os piores índices apresentavam os níveis mais altos de
contaminação por mercúrio.
Para romper a cadeia de intoxicação por
mercúrio, é preciso inviabilizar a atividade ilegal que chegou a atrair 20 mil
garimpeiros. É um problema antigo que passa de governo para governo. Em 1992,
ano em que a reserva ianomâmi foi demarcada, o governo Collor expulsou 40 mil
garimpeiros da região. Com apoio da Polícia Federal e do Exército, pistas de
pouso clandestinas foram destruídas por explosivos. Foi um equívoco achar que a
preservação do território estava garantida. As pistas foram reabertas, e a infraestrutura
do garimpo foi reconstruída.
Agora há evidências de que aumentou o volume
de dinheiro aplicado na mineração clandestina. Os anos de abandono da Amazônia
ajudaram a fortalecer o garimpo ilegal, hoje vinculado ao crime organizado. A
contaminação de indígenas por mercúrio é o efeito perverso de falhas e omissões
de vários governos. Os ianomâmis precisam de mais ajuda emergencial do Estado.
Desta vez, é essencial manter o poder público na região.
Estado imaginário, ditador de verdade
Folha de S. Paulo
Maduro instiga fantasia de anexar território
da Guiana com objetivo de facilitar a sua agenda liberticida na Venezuela
Na caixa de ferramentas dos autocratas
preocupados com a sua sustentação no poder consta a instigação de conflitos com
países estrangeiros. Por meio da patriotada, o regime cria um pretexto para
inibir a oposição doméstica em nome da mobilização das energias nacionais
contra um inimigo externo.
Nicolás
Maduro não inova na forma, portanto, ao promover a celeuma em
torno do território do Essequibo, da vizinha Guiana.
Já no conteúdo o ditador venezuelano deixa a sua contribuição pessoal para a
coleção universal das barbaridades praticadas pelo despotismo em suas disputas
de fronteira.
Na quinta-feira (4), o sucessor de Hugo
Chávez promulgou uma
lei que cria o estado venezuelano da Guiana Essequiba, expropriando
em um golpe de caneta a Guiana de dois terços de seu território. Tudo não passa
de um exercício de ficção aplicado à geopolítica.
Tumeremo, a "capital" da unidade
federativa parida pela imaginação chavista, fica na região de Bolívar, dentro
da Venezuela.
As decisões administrativas porventura tomadas pelos governantes do estado de
fancaria não encontrarão quem as execute dentro do território soberano da
Guiana.
Tanta criatividade não se confunde com
ingenuidade ou loucura. O ditador manipula o sentimento da população, que
majoritariamente rejeita o traçado fronteiriço definido em 1899, tendo
submetido o tema a plebiscito em dezembro.
A descoberta recente de portentosas reservas
petrolíferas na costa do Essequibo aguçou a cobiça retórica do regime chavista
sobre a região, embora a hipótese da invasão militar pareça improvável diante
dos estragos que provocaria na diplomacia das Américas e na depauperada
economia venezuelana.
O objetivo real dessa pantomima nacionalista
é facilitar a navegação de Nicolás Maduro na repressão a qualquer possibilidade
de competição eleitoral viável em seu país.
A ditadura fechou
as portas à participação das candidatas opositoras mais populares no pleito
presidencial de 28 de julho. O
descaramento foi tal que chegou a provocar críticas do governo petista,
até então sempre disposto a defender as atrocidades do aliado.
A detenção por razões políticas atingiu quase
16 mil pessoas na última década, segundo a ONG Foro Penal. Mais de 250
continuam encarceradas, e milhares são objeto de medidas que restringem as suas
liberdades civis.
O regime prepara uma legislação, cinicamente
denominada antifascista, para apertar ainda mais o garrote contra os
opositores.
A ditadura de verdade —opressora,
violenta e corrupta— recorre à fantasia da Guiana Essequiba apenas
para acelerar a marcha de sua agenda liberticida doméstica.
Medicina ideológica
Folha de S. Paulo
CFM cerceia direito ao aborto ao impor limite
temporal para fazer procedimento
Após o comportamento insensato do Conselho
Federal de Medicina (CFM)
na pandemia de Covid-19, ninguém mais se surpreende com suas decisões
retrógradas.
A resolução 2.378, que veda a
assistolia em fetos com mais de 22 semanas para interromper gravidez,
só confirma a captura do órgão por pautas ideológicas.
O método preconizado pela OMS —induzir
a parada de batimentos cardíacos do feto para aumentar a segurança do aborto em
gestações acima de 20 semanas— é aplicado principalmente em casos de estupro,
quando o medo de denunciar e a burocracia da autorização prolongam o período de
gestação.
A legislação brasileira permite o aborto em
casos de risco à vida da mulher, de anencefalia fetal e de gravidez resultante
de abuso sexual. O Código Penal de 1940 não prevê
limite temporal para o procedimento, condição que o CFM se arroga o
poder de revogar.
A entidade cerceia, agora, a autonomia médica
que tanto invocou na defesa de profissionais que, durante a crise sanitária,
propagavam remédios ineficazes contra a Covid.
Tal limitação arbitrária acarretará
ainda mais dificuldade de acesso ao aborto legal. Estima-se que
existam apenas duas centenas de serviços capacitados para realizá-lo nos 5.570
municípios brasileiros, em geral nas regiões mais ricas.
O conselho alega que a assistolia não existia
em 1940 e que fetos são viáveis após 22 semanas. Esse marco no desenvolvimento
embrionário pode ter relevância para o debate abstrato, não porém para cercear
o direito das vítimas de estupro nos casos em que o Estado falhou em atendê-las
a tempo.
Segundo o relator da resolução, Raphael
Câmara, que foi secretário da pasta da Saúde no
governo Jair
Bolsonaro (PL): "Na época, não
se poderia prever que em 2024 ia ter gente querendo matar bebê de nove meses.
Então é óbvio que o Conselho Federal de Medicina tem que se adaptar aos
tempos".
A declaração de Câmara acusa de assassinato mulheres violentadas em atos hediondos. Se de fato o CFM estivesse comprometido com adaptar-se aos novos tempos, deveria inclinar-se para a empatia, não para a crueldade.
Bagunça na Petrobras
O Estado de S. Paulo
Empresa terá o 10.º presidente em dez anos se
Lula fizer mesmo a mudança que pretende, o que por si só basta para mostrar a
falta de seriedade com que se trata a principal empresa do País
Quando estiver sacramentada a mudança no
comando da Petrobras – medida que entrou em contagem regressiva, de acordo com
os sinais emitidos de Brasília –, a empresa terá alcançado a incrível e
inquietante marca de dez presidentes em dez anos. Diante de rodízio tão
frenético de CEOs, movido pela voracidade igualmente intensa de políticos
interessados em se aproveitar da empresa, é quase um assombro que a companhia
mantenha bons resultados.
A surpresa só não é total por causa de dois
fatores básicos: primeiro, o domínio da tecnologia desenvolvida pela Petrobras
para pesquisa, exploração e produção de petróleo em águas ultraprofundas;
segundo, as amarras de governança criadas depois do escândalo de corrupção da
Lava Jato, operação deflagrada também há dez anos. Em razão dessa blindagem, os
diferentes executivos que se sucederam não conseguiram atender integralmente
aos anseios do Palácio do Planalto sob vários presidentes.
Embora alguns deles – caso do atual, Lula da
Silva – se considerem os verdadeiros donos da Petrobras, não custa ressaltar
que este não seria o caso mesmo que a companhia fosse integralmente estatal,
condição que a colocaria como propriedade da União, ou seja, do povo
brasileiro. Como se sabe, a Petrobras é uma companhia mista, com participação
da União e da iniciativa privada, e aí está o seu infortúnio, porque esta é uma
verdade apenas em teoria. Por força de pressões governamentais, na prática a
empresa acaba atuando como estatal. A depender do governo de plantão, às vezes
mais, às vezes menos. A fase atual é de desabrida intervenção.
A fritura do atual presidente, Jean Paul
Prates, ocorre apesar de ele seguir a cartilha petista, partido pelo qual se
elegeu senador, e a despeito de seu empenho na reintegração de partes da
empresa que foram privatizadas, como refinaria e distribuidora. Isso sem falar
em sua mal-ajambrada mudança na política de preços dos combustíveis, que nada
mais fez do que retirar qualquer critério compreensível das decisões de
reajuste.
Mas o executivo pecou ao não endossar o
máximo exigido pela gestão lulopetista no caso da retenção dos dividendos
extraordinários aos acionistas da Petrobras. Foi este o “deslize” que deu a seu
adversário de primeira hora, o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira,
o capital político necessário para sair na frente na tarefa de agradar ao
chefe, o mesmo que descreveu o mercado financeiro – que representa os
acionistas privados – como um “dinossauro voraz que quer tudo para ele”.
Esqueceu-se o presidente de que esse capital
“jurássico” contribuiu fortemente para manter a saúde financeira da empresa
que, mesmo com os baques sofridos a cada golpe intervencionista do governo,
vale R$ 502 bilhões na Bolsa de Valores nacional. A União detém 36,6% das
ações. Para agir da forma como pretende, ignorando os interesses dos
investidores privados “vorazes”, bastaria ao governo Lula da Silva comprar os
63,4% restantes. Como não dispõe de recursos para isso, que siga a dinâmica do
mercado.
Mas o que se vê na relação do governo federal
com a Petrobras é uma esculhambação que se arrasta há anos, com uma breve
interrupção na gestão de Pedro Parente, entre 2016 e 2018, período em que foram
revistos os critérios de governança da empresa. Parente foi nomeado pelo então
presidente Michel Temer logo após o impeachment de Dilma Rousseff – cuja gestão
voluntarista e intervencionista deixou a Petrobras à beira de quebrar, com uma
dívida mais de cinco vezes superior a seu caixa.
A corrupção desbragada teve sua parcela na
derrocada, sem dúvida, mas o que mais contribuiu para a situação claudicante da
empresa foram as decisões baseadas unicamente em interesses políticos, como o
congelamento de preços da gasolina e a compra de refinarias, que impuseram
prejuízos enormes. A Petrobras perdeu o grau de investimento no mercado
internacional, credibilidade e investidores. Caiu do 1.º para o 5.º lugar na
Bolsa.
Num momento em que a mão do Estado recai,
mais uma vez, pesada e implacável sobre a empresa, é importante recordar as
consequências dessa política insana. Talvez seja o momento de a sociedade
debater se deseja manter a Petrobras como estatal.
O exemplo eloquente da Embraer
O Estado de S. Paulo
Enquanto a política industrial do governo
investe no protecionismo e no dirigismo, a Embraer importa quase todos os
componentes de seus aviões e compete de igual para igual no mundo
A Embraer está voando alto. O lucro líquido
cresceu 13% em 2023: US$ 164 milhões, o maior em cinco anos. Todas as unidades
de negócio tiveram crescimento no volume de entregas, o maior desde 2019, e na
receita: US$ 5,2 bilhões, 16% acima de 2022. A expectativa para 2024 está entre
US$ 6 bilhões e US$ 6,4 bilhões.
O caso é pedagógico no momento em que o
governo encarrilha sua “nova” política industrial, batendo bumbo para mais do
mesmo: Estado “indutor” (via subsídios, isenções, barreiras tarifárias,
exigências de conteúdo local), quando não “empresário” (via estatais) – e,
claro, muita saliva e chumbo grosso contra o diabólico “mercado”.
Quando a Embraer foi privatizada, em 1994,
estava quebrada. Hoje é uma das maiores empresas do mundo num nicho de
tecnologia de ponta ultracompetitivo. Uma das maiores exportadoras industriais
do Brasil, a Embraer é também grande importadora. Sem exigências de conteúdo
local, 80% dos componentes de seus aviões são importados.
Não se trata de demonizar incentivos à
indústria – eles podem ser pertinentes em circunstâncias excepcionais para
setores específicos, com diagnósticos, metas e monitoramento precisos. Tampouco
se trata de elevar a privatização a uma panaceia, mas de reconhecer, conforme a
Constituição, que estatais devem ser exceção e atuar no mercado nas mesmas
condições de uma pessoa jurídica de direito privado, sem desvios ou
privilégios.
Para a mentalidade desenvolvimentista do
lulopetismo, caudatária da ditadura Vargas e da ditadura militar, o Estado
indutor e empreendedor é a panaceia, quando deveria ser um remédio excepcional
para circunstâncias excepcionais, as ditas “falhas de mercado”.
Nesses casos, o Estado suplementaria funções
que o mercado não cumpre adequadamente. É o que se alega, por exemplo, no caso
dos monopólios naturais (como o abastecimento de água num município), ou da
produção de bens que geram externalidades positivas para toda a sociedade (como
pesquisas científicas), ou de mercados incompletos (como créditos para
atividades não servidas pelos bancos), ou de estímulos a regiões
subdesenvolvidas.
Mas a literatura e a experiência econômica
mostram que, para corrigir essas falhas, estatais não são necessariamente a
única nem a melhor opção. No Brasil, via de regra, são a pior, porque os
governantes, por incompetência ou interesse, dão livre vazão às “falhas de
governo”. As estatais são ambiente fértil para capturas políticas e, mesmo
quando não há desvio ou corrupção, há inúmeros incentivos à gestão ineficiente,
como limites legais à possibilidade de falência, salvaguardas com o dinheiro do
contribuinte, regimes de trabalho nos moldes do serviço público ou monopólios
blindados pelo Estado.
O Brasil tem mais empresas controladas direta
ou indiretamente pelo Estado do que qualquer uma das 36 nações da OCDE – um
fórum das democracias avançadas. Boa parte deveria ser desestatizada ou
liquidada. As pertinentes precisariam ser blindadas de interferências
político-partidárias espúrias. A Lei das Estatais de 2016 fez algum progresso
para robustecer a transparência, controles internos, gestão de risco e
governança. Mas o Executivo, às vezes com a conivência do Legislativo ou do
Judiciário, manobra para erodir essa disciplina. E muito ficou por fazer.
No curto prazo seria preciso criar uma
política de gestão que inclua justificativas mais claras para a participação do
Estado em empresas e fortaleça os conselhos de administração. Nomeações e
demissões de conselheiros e executivos deveriam ser condicionadas a um órgão de
Estado, não de governo. Também são necessárias tipificações mais rigorosas para
a ingerência ilícita na autonomia dos conselhos de sociedades de economia
mista.
Enquanto isso, o governo intervém na
Petrobras, por exemplo, para forçar investimentos em atividades ociosas ou
onerosas, como refinarias ou estaleiros. A economia segue dando voos de galinha
sob a mão pesada do Estado, enquanto a mão invisível do mercado lança empresas
como a Embraer às alturas. Mas, se dependesse de Lula, a Embraer já teria sido
reestatizada.
Resolução ilegal
O Estado de S. Paulo
Ao vedar aborto legal, CFM afronta a lei e um
direito garantido às mulheres há 84 anos
O Conselho Federal de Medicina (CFM) editou
uma resolução que veda a prática do aborto legal em gestações com mais de 22
semanas. Segundo o CFM, uma vez transposto esse marco temporal, “há chance de
vida fora do útero”, razão pela qual os médicos não estão mais autorizados a
realizar a assistolia fetal, um procedimento que leva à morte do feto. “Após 22
semanas, é possível preservar o direito da gestante de interromper a gravidez
fruto de estupro e garantir o direito à vida (do feto), com a antecipação do
parto”, disse o conselheiro Rafael Câmara, relator da resolução. Sobre quem,
afinal, haveria de recair a responsabilidade pelos cuidados com a criança, não
se ouviu nem uma palavra da guilda médica.
A resolução do CFM, que decerto chegará ao
Poder Judiciário cedo ou tarde por sua manifesta ilegalidade, afronta um
direito das mulheres garantido pela legislação brasileira há nada menos que 84
anos. O Código Penal é claríssimo ao não punir o aborto praticado por médico –
em qualquer fase da gestação, ressalte-se – quando não há outro meio de salvar
a vida da gestante (o chamado “aborto necessário”) e no caso de gravidez
decorrente de estupro, desde que haja consentimento da vítima ou de seu
representante legal.
Em abril de 2012, o Supremo Tribunal Federal
(STF) ainda reconheceu como igualmente lícita a “interrupção da gravidez de
feto anencéfalo”, ou seja, do feto que, por não ter desenvolvido o cérebro, não
tem capacidade de sobreviver fora do útero da mãe. Nas palavras de Marco
Aurélio Mello, então ministro relator daquele julgamento, tido como histórico
pelo STF, “anencefalia e vida são termos antitéticos”.
Classificando a assistolia fetal como
“feticídio”, os conselheiros do CFM autorizaram os médicos a adotar o
procedimento, considerado o mais indicado para gestações em estágio avançado,
apenas até a 22.ª semana. Ao que tudo indica, esse recorte temporal foi adotado
porque, segundo explicou Câmara, é o momento em que se considera viável a vida
extrauterina. O busílis é que não cabe ao CFM determinar prazo algum para a
realização do aborto legal, quando nem o Código Penal nem a Constituição o
definem. Nenhum médico Brasil afora pode ser processado criminalmente caso
realize um aborto naquelas três circunstâncias autorizadas por lei. E tampouco
deve sofrer quaisquer sanções de natureza administrativa.
Ao fim e ao cabo, o que o CFM está fazendo é
impingir às mulheres brasileiras um enorme sofrimento adicional a uma violência
sofrida por elas ou à angústia de ter de optar entre a sua própria vida ou a do
feto que carrega no ventre. É de uma crueldade inominável essa resolução ilegal
do CFM, pois é evidente que profissionais de saúde passarão a ter receio de
realizar abortos mesmo nos casos autorizados pela legislação temendo sofrer
punições.
Por fim, para além da violência de gênero contida nessa resolução, há ainda uma clivagem socioeconômica que não pode ser ignorada. É claro que as gestantes mais pobres serão as mais penalizadas.
Jogo de soma zero prejudica a Petrobras
Correio Braziliense
Os interesses dos jogadores são opostos, e
não cooperativos, suas perdas e danos são individuais, mas afetam direta e
negativamente o valor de mercado da empresa
Não importa quem tem razão na disputa entre o
presidente da Petrobras, Jean Paul Prates, e o ministro de Minas e Energia,
Alexandre Silveira. A discussão sobre a gestão dos dividendos da empresa no
contexto de uma disputa de poder entre facções políticas, como está se
apresentando, é um jogo de soma zero. Ou seja, os interesses dos jogadores são
opostos, e não cooperativos, suas perdas e danos são individuais, mas afetam
direta e negativamente o valor de mercado da empresa.
A crise entre ambos deu lugar a uma disputa
de poder entre o PSD, aliado do governo, e o PT, que pretende se aproveitar das
divergências para emplacar no comando da Petrobras o atual presidente do BNDES,
Aloizio Mercadante. Será mais um contraponto ao ministro da Fazenda, Fernando
Haddad, que sofre permanente "fogo amigo" dos petistas. Assim, terá
repercussão geral no ambiente econômico e na credibilidade do governo junto aos
investidores.
A polêmica entre Silveira e Prates pôs na
ordem do dia, da pior forma possível, a troca de comando da empresa. A última
reunião do atual Conselho de Administração será no próximo dia 19; assembleia
geral para eleição dos novos conselheiros, em 25 de abril. Mesmo que Prates
seja mantido no cargo, substituir Pietro Mendes, presidente do Conselho de
Administração da Petrobras e aliado de Silveira, pelo ex-senador Aloizio
Mercadante, economista desenvolvimentista, mostra a intenção de um grau de
interferência política do PT na gestão da empresa que contraria as boas regras
de gestão corporativa.
Há precedentes de erros estratégicos
cometidos na gestão da Petrobras durante os governos do PT, que levam
desconfiança ao mercado. Não se trata apenas do escândalo da Petrobras, mas
também de uma concepção de expansão das atividades da empresa para setores que
não são diretamente ligados à atividade-fim, a produção de energia. É o caso da
Sete Brasil, empresa criada para fabricar sondas de exploração do pré-sal, que
foi a joia da coroa do chamado "Petrolão" e causou enormes prejuízos
à empresa.
Silveira também foi protagonista da crise
provocada pela fracassada tentativa de emplacar o ex-ministro da Fazenda Guido
Mantega no comando da Vale. Embora possa agradar ao presidente Luiz Inácio Lula
da Silva, sua atuação no "enquadramento"de estatais de sua pasta
denota uma tendência de intervenção política na gestão da empresa. O Brasil tem
uma cultura avessa à gestão de ativos públicos por critérios de excelência e
meritocracia.
A gestão de ativos públicos pode impulsionar
ou prejudicar o crescimento econômico. Muitos países sofrem com a falta de
investimentos em infraestrutura porque gerenciam mal os seus ativos. Está
provado que a democracia tem mais chances de atuar em prol do interesse
comunitário quando os governantes se preocupam mais com os consumidores e
entregam esses ativos à administração profissional e, para isso, lançam mão do
que existe de melhor na gestão corporativa.
Um novo fracasso na gestão da Petrobras, como
o que ocorreu nos governos petistas anteriores, pode arrastar a imagem do
presidente Lula ladeira abaixo e resultar, mais à frente, na privatização
integral da empresa. Não faltam exemplos de privatizações bem-sucedidas para a
oposição construir uma narrativa com esse objetivo.
Um comentário:
Li todos os editoriais,muito bom.
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