sexta-feira, 26 de julho de 2024

Fernando Abrucio - Sucessão da Câmara e a democracia

Valor Econômico

Está em jogo o destino institucional do Legislativo, um processo que envolve uma avaliação acurada sobre os avanços obtidos e diversos problemas que a Casa ainda tem

Os atores políticos não estão de olho apenas na eleição municipal. Uma disputa que está mexendo com a elite da classe política é a sucessão na Câmara Federal. Depois de um dos presidentes mais poderosos da história da Casa, o deputado Arthur Lira, alguns candidatos surgiram e há meses fazem uma das mais longas campanhas da trajetória recente do Congresso. Pergunta-se muito qual nome seria o mais adequado para manter o poder obtido pelo Legislativo, mas pouco se fala sobre qual projeto seria melhor para que essa instituição servisse melhor à sociedade e à democracia do país.

É inegável que o perfil dos candidatos vai afetar o futuro da Câmara Federal. Nomes, com suas trajetórias institucionais, fazem sempre diferença em política. Só que está em jogo o destino institucional do Legislativo, um processo que envolve uma avaliação acurada sobre os avanços obtidos e diversos problemas que a Casa ainda tem. E, por enquanto, os concorrentes estão mais ávidos em fazer jantares e conversas reservadas com caciques políticos e deputados do baixo clero do que em apresentar projetos que definam os rumos da instituição nos próximos anos.

O principal ponto de partida para a discussão de um projeto de aperfeiçoamento institucional da Câmara Federal é o diagnóstico corrente na opinião pública e na ciência política de que houve uma relevante mudança no presidencialismo de coalizão, com o aumento do poder do Legislativo e o enfraquecimento relativo do Executivo federal neste jogo institucional. Essa percepção é majoritária, mas há visões divergentes ou formas diferentes de enxergar esse fenômeno, particularmente analisando a gestão de Arthur Lira.

Para parte importante dos analistas e atores políticos, o reforço recente do Legislativo federal piorou o sistema político, com o aumento do emendismo clientelista, do poder de chantagem do Centrão, de decisões tomadas pelos deputados com pouca conversa junto à sociedade, de uma polarização legislativa que transformou reuniões em baixarias sem controle e, sobretudo, da força de um presidente da Casa que desequilibrou o jogo dos Poderes. Todos esses pontos expressam grande parte da verdade dos fatos, porém, a Câmara Federal na Era Arthur Lira é mais do que isso.

A liderança de Lira teve um papel central na garantia da democracia, seja na votação que derrotou a possibilidade da volta das cédulas de papel nas eleições de 2022, seja na posição firme de reconhecer imediatamente a vitória de Lula no pleito presidencial. Talvez se possa dizer que não fez mais do que a obrigação de um democrata, só que o cenário de golpe estava muito avançado e nem todos teriam a coragem para ir contra o golpismo bolsonarista. Provavelmente a maioria dos congressistas não teria segurado essa barra.

Lira também foi fundamental para garantir a base orçamentária do novo governo, para aprovar o novo arcabouço fiscal e, sobretudo, em todo o processo de tramitação e aprovação da reforma tributária, modificação que esperara mais de 30 anos para avançar no Legislativo. Sempre será possível reclamar de uma ou outra atuação de Lira, mas houve igualmente projetos maiores em seu mandato.

Os lados problemático e positivo da presidência de Arthur Lira coexistiram, e o novo presidente que for eleito em fevereiro de 2025 terá de levar em conta que precisa aprender com ambos para enfrentar os desafios de fazer algo melhor do que o antecessor. Não basta ser o chefe do sindicato dos deputados para ser um comandante forte da Casa. Arthur Lira foi isso e algo mais, tendo um projeto de poder voltado a alguns temas fortes em setores sociais importantes.

Ademais, as críticas feitas ao novo perfil de poder do Legislativo vão continuar e provavelmente se tornarão mais fortes daqui para a frente. Não será possível simplesmente ignorar essas visões negativas, ao custo de se perder legitimidade e força ao longo dos próximos dois anos. O caráter reformista e defensor das instituições que também esteve presente em alguns momentos de 2021 a 2024 terá de encontrar um novo sentido. Quais reformas serão priorizadas pelo sucessor de Lira?

Todo esse processo de aperfeiçoamento institucional, por fim, terá como bússola política fundamental uma eleição presidencial novamente polarizada, mas com um provável candidato à reeleição cujo mandato é baseado em políticas públicas, e não na guerra cultural e num distributivismo improvisado, como fora Bolsonaro. Neste cenário, há muitas chances de o Centrão se dividir na eleição de 2026, porque será difícil ficar completamente contrário a um governo federal que terá muito poder na execução das emendas e programas governamentais. Qual será o impacto disso na governabilidade do futuro presidente da Câmara?

Diante da necessidade de se ter um projeto institucional para a futura gestão da Câmara Federal, elencam-se aqui cinco desafios centrais para o biênio 2025-2026. O primeiro diz respeito ao modelo de processo legislativo que Lira implantou na Casa. O alto grau de centralização decisória do ponto de vista da agenda legislativa e a rapidez do processo decisório são dois pontos que marcaram o grande poder do então presidente, mas que, ao final, desgastaram a figura pessoal de Lira e, pior, o próprio Legislativo. A votação sobre o PL relativo ao aborto é o maior exemplo disso, embora a votação da definição das alíquotas do novo IVA brasileiro tenha sido ainda mais desastrosa para o país - e é provável que o Senado mude várias das decisões dos deputados, desmoralizando a condução política feita por Lira.

Uma governança baseada em poucos atores, com deliberações açodadas que reduziram o tempo de reflexão e discussão dos deputados, é um desastre para a imagem institucional da Câmara Federal e algo que cada vez mais desgastará os ocupantes da presidência da Casa, porque o número de descontentes tende a aumentar com o uso desmesurado do poder centralizado.

Em poucas palavras, o futuro comandante da Câmara precisa construir um modelo de maior debate e parcimônia na tramitação das matérias legislativas. Muitas reformas são necessárias, mas serão tanto melhores se forem decididas com o tempo necessário de maturação, com abertura para que se ouçam mais as opiniões minoritárias e que os majoritários possam fazer suas escolhas levando em conta todas as consequências de suas decisões.

Em complemento ao aspecto anterior, um segundo desafio para o sucessor de Arthur Lira será ouvir mais a sociedade e os especialistas na construção de sua agenda legislativa. Não que a Câmara tenha sido fechada para os setores sociais. Todavia, há a impressão de que ficou mais aberta a determinados grupos e lobbies.

Para mudar essa percepção, é preciso abrir a Casa para mais discussões substantivas com a população e com estudiosos. O caso da redução da tributação sobre as armas mostra que a soma do açodamento e centralização decisórios com a falta de efetivo diálogo com a sociedade gerou um monstrengo, que provavelmente será mudado pelo Senado. A volta para a Câmara dessa proposição certamente colocará a instituição numa saia justa junto à maioria do eleitorado, tal como aconteceu na questão do aborto.

Um terceiro desafio diz respeito ao clima de guerra criado na Câmara, com parlamentares brigando como moleques da sétima série, em vez de atuarem como representantes pagos pelo povo para resolver os problemas do país. A liderança dessa baderna certamente é da bancada mais próxima da extrema direita, com destaque para os midiáticos que ganham poder se tornando heróis da radicalização nas redes sociais. Mas parte dos congressistas governistas também entrou nesse clima juvenil e irresponsável. Acabar com esse circo é uma forma de evitar que o discurso antipolítico e antidemocrático enfraqueça todas as instituições, incluindo o Congresso Nacional.

Será muito difícil manter parte do modelo emendista atual no próximo biênio legislativo. Este quarto desafio provavelmente já emergirá com uma nova decisão do STF sobre as chamadas emendas Pix, que não têm transparência e racionalidade orçamentária. Isso não quer dizer que os congressistas devam abdicar de seu poder orçamentário, só que ele deve ter um formato mais compatível com o controle democrático e com a boa organização das políticas públicas. Ser influente sobre as bases políticas locais é legítimo e os parlamentares precisam recalibrar o modo de exercer esse poder, porque a visão do eleitorado sobre o modelo atual tenderá a piorar cada vez mais.

Como último e mais complexo desafio está a necessidade de melhorar a articulação e reduzir o conflito com as outras instituições políticas, como o Senado, o STF e a Presidência da República. A defesa da relevância estratégica da Câmara Federal deve ser prioridade de seu presidente, para que não haja dúvida do papel dos deputados eleitos pelo povo brasileiro. Não obstante, tanto mais bem avaliado será o sucessor de Arthur Lira se ele for capaz de ampliar o diálogo democrático e distensionar a polarização política.

Em 2026 haverá uma nova eleição presidencial que poderá fraturar o país ou recolocar a disputa política num patamar civilizado. Neste embate, o novo presidente da Câmara será uma peça-chave para garantir um desfecho feliz à democracia do país.

 

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