terça-feira, 23 de julho de 2024

Maria Cristina Fernandes - O que Lula perde e ganha sem Biden

Valor Econômico

Biden na cédula traria o paradigma de um octogenário reeleito, mas Kamala é quem oferece a chance de derrotar o farol da extrema direita mundial

Joe Biden ainda estava em sua casa de veraneio, em Delaware, matutando sobre a decisão que tomaria no domingo quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva levantou-se do palanque para fechar, no fim da tarde de sábado, a convenção que sacramentou a chapa Guilherme Boulos/Marta Suplicy para a Prefeitura de São Paulo: “Estou vivendo o melhor momento de minha passagem pelo planeta Terra”.

De calça jeans, camisa de gola rolê e blazer, Lula falou depois da ex-prefeita e candidata a vice, de 79 anos, que leu seu discurso, e da deputada federal Luiza Erundina (Psol-SP), de 89 anos, que foi no improviso sem perder o fio da meada.

Caçula da trinca, aos 78 anos, Lula percorreu o palanque, por 25 minutos, na fala mais esfuziante da tarde em que disse ser tão candidato quanto o deputado federal de 42 anos que encabeça a chapa. Jogou todas as fichas na campanha como um plebiscito sobre seu governo e no polo de resistência contra “o nazismo e o facismo”.

A jogada é de risco porque a popularidade do presidente, na capital paulista, está empatada com a do prefeito e candidato à reeleição, Ricardo Nunes, mas os estrategistas da campanha Psol/PT apostam que, finda a temporada de inaugurações, a campanha situacionista reduzirá sua exposição.

Ainda na noite do domingo, os bolsonaristas começaram a se revezar nas redes sociais para explorar o flanco do etarismo contra Lula, que é três anos mais novo que o presidente americano. “Biden EUA está fora! Quando o Biden brasileiro vai sair?”, escreveu o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) no X. Lula e Trump nasceram em 1945.

Por mais que jogue como se o futuro de seu governo estivesse atrelado ao palanque paulistano, Lula passou recibo do impacto da eleição americana sobre seu futuro.

Nesta segunda, achou por bem tomar distância. Não estendeu a Kamala Harris o apoio já manifestado à reeleição de Biden. “Agora eles vão escolher uma candidata ou um candidato, e que o melhor vença a eleição. A relação do Brasil será com quem for eleito. Temos uma parceria estratégica com os Estados Unidos e queremos mantê-la”, disse, em entrevista a jornalistas estrangeiros. E antes que aparecesse alguém que lhe perguntasse se o gesto serviria de inspiração aos presidentes octogenários, foi logo declarando: “Somente ele poderia decidir se iria ou não ser candidato.”

Foi uma completa mudança de tom em relação ao apoio declarado a Biden durante entrevista à rádio Itatiaia, no fim de junho: “Sou simpático ao Biden, acho que o Biden é a certeza de que os Estados Unidos vão continuar respeitando a democracia. O Trump já deu aquela demonstração quando ele invadiu o Capitólio, que não é uma coisa correta de se fazer. Ele fez lá um pouco do que se tentou fazer aqui no Brasil com o golpe de 8 de janeiro.”

Não parou por aí. Engatou a quinta e pisou mais fundo: “Então, como democrata, eu estou torcendo para que o Biden saia vitorioso. E se o Biden ganhar, eu já conheço o Biden, já tenho uma relação com os Estados Unidos, que é uma relação sólida, eu pretendo manter. Quando ganhar, se o Trump ganhar, a gente não sabe o que ele vai fazer.”

O freio de arrumação na política externa não se restringiu à perda de entusiasmo do presidente com a entrada de Kamala Harris, 59 anos, na cabeça de chapa. Cobrado a se posicionar sobre a ameaça de “banho de sangue” de Nicolás Maduro, em caso de resultado que lhe seja desfavorável, Lula, na semana passada, colocou Venezuela, Nicarágua e Argentina no mesmo saco: “Eles que elejam quem eles quiserem.”

Nesta segunda, achou por bem dizer-se “assustado” com a declaração do presidente venezuelano. E já incorporou a possibilidade de um resultado negativo para Maduro: “Quem perde as eleições toma um banho de voto, não de sangue.” O Itamaraty foi além e soltou uma nota demonstrando preocupação com a desqualificação de uma das candidatas da oposição, Corina Yoris, e cobrando uma explicação do governo Maduro.

Lula se move num tabuleiro mais hostil no continente do que aquele que desfrutou nos seus dois primeiros mandatos. Nenhum resultado, porém, lhe seria mais negativo do que a vitória de Donald Trump em novembro, tratada pela extrema direita no Brasil como um elixir.

Se a perspectiva levou o presidente brasileiro a cruzar a fronteira e se manifestar favoravelmente à reeleição do presidente americano, o passo atrás repõe a posição brasileira no lugar de onde não deveria ter saído. Não parece haver dúvidas, porém, das razões pelas quais Lula passou recibo sobre a ausência de Biden da cédula.

Não apenas porque tira de cena um candidato de 81 anos cuja recondução à Casa Branca respaldaria as pretensões eleitorais de octogenários mundo afora. Sai também um presidente com quem Lula compartilha a pauta de combate à precarização das condições de trabalho, renovação dos laços sindicais e fortalecimento do papel do Estado na economia.

No seu lugar, entra uma candidata que recoloca na ribalta a pauta identitária que Lula vem tentando driblar, inclusive na campanha municipal, porque a identifica como berçário da extrema direita. Se se mostrar mais competitiva, como aposta Biden, porém, Kamala impedirá que Trump volte a ser o farol da extrema direita no mundo. Também por isso terá prestado um serviço a este governo.

 

3 comentários:

Anônimo disse...

E quando o Trump brasileiro vai ser encarcerado??

Anônimo disse...

Muito bom! Inclusive muito interessante o final: "a pauta identitária que Lula vem tentando driblar, inclusive na campanha municipal, porque a identifica como berçário da extrema direita." Tem certa lógica, dá o que pensar!

ADEMAR AMANCIO disse...

Verdade.