segunda-feira, 11 de junho de 2012

Fonte da saudade histórica:: Wilson Figueiredo

O teor de intimidação implícito em comissões parlamentares de inquérito se firmou com o costume brasileiro de ceder ao seu fascínio no encaminhamento de situações sem saída normal. É a janela por onde a oposição mata saudade do poder. Toda vez que a sombra de um impasse se apresenta, apela-se instintivamente para essa fonte de emoções que envenenam a democracia em eterno recomeço entre nós, brasileiros de nascença e de convicção.

O método se apresentou na campanha presidencial que corria fagueira com o fim da censura em fevereiro de 1945. A guerra chegava ao fim e os brasileiros retomavam o caminho das urnas, mas ainda à sombra dos temores de retrocesso que veio a ser fenômeno cíclico da vida política brasileira. O Estado Novo estava sendo, vá lá, desconstruído ao vento revitalizador que soprava de fora para dentro do país. Os brasileiros vibravam civicamente com a oportunidade de voltar às urnas para eleger presidentes da República. Tinham se passado quinze anos de completa abstenção dessa elementar prática universal, para edificar a democracia sobre o que restasse do Estado Novo, que ruiu por tabela com o fim dos regimes que lhe serviram de inspiração no Velho Mundo. O preço era barato. De ocasião.

Nos últimas semanas da campanha presidencial, o eleitorado se polarizava entre duas candidaturas de procedência militar (não por acaso, mas cautela), um brigadeiro do ar e um general com os pés na terra. O mês de outubro aproximava o momento histórico. As definições estavam feitas, mas havia uma exceção. Enquanto a UDN e o PSD (União Democrática Nacional e Partido Social Democrático) contrastavam, respectivamente, uma exaltação liberal e uma convicção conservadora, a novidade era a expectativa da opção eleitoral dos comunistas entre o brigadeiro Eduardo Gomes e o general Eurico Dutra.

Aí residia a questão: qual dos dois candidatos teria a preferência do voto comunista legalizado e, portanto, com algo a acrescentar ao debate político e à campanha presidencial. O voto dos comunistas estava bem avaliado (ainda não havia pesquisas de opinião). A expectativa crescia por motivos óbvios, mas nenhum dos dois candidatos lançou ofertas em troca de apoio do PCB. Havia um resto de prevenção anti-comunista.

Pela voz do seu secretário-geral, Luiz Carlos Prestes, portador do prestígio da Coluna dos anos 20, o PCB avaliou o próprio peso no comparecimento popular aos comícios que abarrotavam as praças públicas: Rio, São Paulo, Porto Alegre, Salvador, Recife animavam a presença do eleitor nos comícios. Aproximava-se a data da eleição em dezembro e a demora da definição dos comunistas, mais do que tática, indicava algo que não estava devidamente definido. O PCB, afinal, entre Eduardo Gomes e Eurico Dutra, optou pelo candidato próprio: lançou o engenheiro Yedo Fiúza, ex-prefeito de Petrópolis. Não era nome nacional, nem tinha antecedentes políticos numa ditadura que não se dava ao luxo de eleições. Foi um balde de água fria no eleitorado de esquerda.

Ai entrou em cena, e fez a sua estréia, ninguém menos do que o jornalista Carlos Lacerda, com a série de artigos que, noutras circunstâncias, seria tratada como catilinária, que reuniu nele mesmo tanto Catilina quanto Cícero. Não era em Roma, mas no Brasil. Lacerda carregou na mão pesada: no primeiro artigo (no Correio da Manhã) e situou o candidato comunista como um ilustre desconhecido, sem currículo e sem credenciais. Pior, administrador inescrupuloso. Daí por diante, em longos artigos, chamava-o de “rato Fiúza”. O objetivo político se situava além da eleição, o eleitorado de esquerda arrefeceu, e os próprios comunistas viveram a dificuldade de fazer campanha por um candidato com esse perfil avivado diariamente em exemplos citados com nomes, endereços e valores.

A moral da história veio com o temor de que a denúncia de Lacerda levasse a um processo – por injúria, difamação e calúnia – e prejudicasse, o candidato da UDN. Diz a tradição oral que Prudente de Moraes Neto foi a Lacerda e lhe perguntou se dispunha de provas suficientes para sustentar a denúncia.”Provas? Não tenho nenhuma. Elas vão começar agora a chegar”.
As comissões parlamentares de inquérito se sustentam até hoje com base no mesmo princípio: a denúncia atrai as provas. Lacerda saiu de cena, mas o método ainda mantém alto rendimento político. O resto vai. A atual CPI mista não foi além das premissas e jogou para o futuro o material pesado. Com o tempo, quando for conveniente, as conseqüências se apresentarão.

Wilson Figueiredo é jornalista

FONTE: JORNAL DO BRASIL

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