A
Lei Áurea foi outra de nossas generosidades: os escravos já não poderiam ser
vendidos, nem obrigados ao trabalho forçado, mas não lhes demos terra para
produzir a própria comida, nem escolas a seus filhos.
Mais
recentemente, quase no quinto centenário da existência do país, fomos generosos
estabelecendo um salário mínimo. Mas tão mínimo que sempre foi insuficiente
para cobrir os custos básicos dos serviços e bens essenciais. Para não ficar
sem trabalhadores há outra generosidade: o vale-refeição. As famílias ficavam
sem comida, mas os trabalhadores recebiam a comida que o salário não permitia.
Durante
a escravidão fomos generosos oferecendo "casa" para os escravos: as
senzalas fétidas e insalubres. Quando a industrialização pôs os trabalhadores
morando distantes do lugar do trabalho, e o salário não permitia pagar passagem
de ônibus, oferecemos, generosamente, vale-transporte, mesmo que no fim de
semana ele e a família não possam visitar parentes ou passear no centro. Temos
sido generosos ao oferecer renúncia fiscal no Imposto de Renda para financiar
escolas particulares, inclusive dos filhos de ricos, em um valor superior ao
gasto médio anual por criança na escola pública, sobretudo dos filhos de
pobres.
Generosamente,
oferecemos Bolsa Família, mas não nos comprometemos a emancipar os pobres da
necessidade de bolsas. Generosamente, não oferecemos creches e pré-escolas,
provocando desespero em milhares de mães que precisam trabalhar, por serem
obrigadas a deixar seus filhos com outros filhos ou com vizinhos.
Generosamente,
oferecemos também cotas para facilitar o ingresso de jovens negros na
universidade, mas não fazemos o esforço necessário para erradicar o
analfabetismo que tortura cerca de 11 milhões.
Somos
generosos facilitando o endividamento de famílias da classe C para comprar
carros a serem pagos em até cem meses, sem IPI, mas não eliminamos impostos
sobre a cesta básica, nem melhoramos o transporte público para todas as
classes, inclusive D e E.
Nossa
generosidade chega ao cúmulo ao gastarmos muitos bilhões de reais para fazer no
Brasil as Copas e as Olimpíadas, que nossos pobres vão assistir pela televisão,
e não adotamos o compromisso de investir os royalties do petróleo na educação
de nossas futuras gerações.
Somos
um país coerente, com cinco séculos de generosidade seletiva invertida, ou
pervertida.
Senador (PDT-DF)
Fonte: O Globo
Nenhum comentário:
Postar um comentário