- O Estado de S. Paulo
No poema de Antônio Cícero, o inverno no Leblon é quase glacial. Lembrei-me do poema e da canção cantada por Adriana Calcanhotto porque fez frio no Leblon. Imagine em Curitiba.
Enquanto a economia brasileira vai, aos poucos, buscando seu rumo, a imprevisibilidade maior está na política e em seus desdobramentos.
O deputado Eduardo Cunha deve cair e pode passar o inverno na cadeia. Isso é previsível; o comportamento dele, uma incógnita. Seria ele capaz de enfrentar longos anos de cadeia, sem buscar um acordo de delação premiada?
O mais resistente dos empresários, Marcelo Bahia Odebrecht, parece decidido a fazer a delação premiada. Os que resistem com base ideológica, como José Dirceu e João Vaccari Neto, teriam acenado com uma nova modalidade de acordo: a leniência partidária.
De um modo geral, os acordos de leniência são feitos com empresas. Um acordo de leniência partidária seria uma jabuticaba, e sua menção foi criticada por procuradores. Tudo indica que suas chances são mínimas. A proposta revela uma inflexão. Os partidos são responsáveis pelo que aconteceu nos governos do PT. Vaccari não pegava todo aquele dinheiro para guardar em sua mochila. Nem José Dirceu usou a fortuna que lhe foi destinada apenas com gastos pessoais.
O que eles parecem estar querendo dizer é isto: não é justo que apenas alguns indivíduos paguem por um comportamento que envolve uma organização partidária.
Naturalmente, está contida nessa proposta a sugestão de que trabalharam para o partido e esperam, agora, uma socialização da responsabilidade.
É possível que esteja embutida na proposta a espera da própria redução da pena, na suposição de que a divisão do fardo alivie os ombros dos indivíduos.
Acho ingênuo supor que os partidos sobrevivam depois de reconhecerem sua culpa e pagarem pesadas multas. Mas, se escaparem, não estariam sobrevivendo como uma farsa, fingindo que nada aconteceu?
Uma outra variável importante neste cenário foi o pedido de prisão da cúpula do PMDB. O pedido vazou, foi criticado, defendido e acabou sendo negado esta semana pelo ministro Teori Zavascki.
Observando-o à distância, dois fatores emergiram no próprio vazamento. Um deles é a articulação para sabotar a Operação Lava Jato. O outro, a pura distribuição de propinas: quem levou quanto, por que e quem entregou o dinheiro?
Mesmo sem entrar no mérito de um texto que desconheço, é possível concluir que não só teremos o presidente da Câmara preso, mas o do Senado sob constante pressão.
A Lava Jato tem seu rumo, a recuperação econômica, também o seu. Cada qual segue seus trilhos, mas a tendência no horizonte é de que a Lava Jato, por meio de extensas delações, apresente uma radiografia completa do processo de financiamento político no Brasil.
Isso significa que é muito tênue o fio da recuperação econômica quando o processo político entra em decomposição.
Muitos acham que o problema foi resolvido com o financiamento público de campanha. Não foi. Há sempre novos truques na cartola. E a Lava Jato não conseguirá repatriar todo o dinheiro desviado, favorecendo alguns competidores no futuro próximo.
Os partidos seguem um pouco como sonâmbulos. Mas deviam perceber que, apesar da responsabilidade dos indivíduos, o próprio sistema político se inviabilizou.
Nada será como antes da Lava Jato. Será preciso aprender a fazer campanha com pouco dinheiro, quase nenhum, abandonar as superproduções do marketing, retornar ao mundo das ideias.
A ideia de José Dirceu e de Vaccari – se é que é deles mesmo – não tem nenhuma chance de vingar. Mas isso não impede os partidos de buscarem a Lava Jato dispondo-se a discutir responsabilidade e reparação.
Imagino como as raposas do PMDB ou mesmo o núcleo duro do PT devam achar ridícula essa proposta. Lembro apenas de uma frase célebre: a raposa sabe muitas coisas, o porco-espinho sabe uma só, que é se defender.
O estar na cadeia é a compreensão de que o mundo ruiu e o passar do tempo na cela, um longo aprendizado sobre negação, resistência e, finalmente, o desejo de negociar.
A experiência de cadeia também mostra que, quanto mais autoconfiante você se mostra, mais dura é a queda.
O que José Dirceu e Vaccari parecem ter dito com a proposta é isto: Não fomos apenas nós. Onde estão os outros?
Esse tipo de apelo parece muito distante de Lula, que é a voz mais poderosa do PT. Ainda há poucos dias ele voltou a dizer numa entrevista para o exterior que ninguém é mais honesto do que ele, nenhum procurador, juiz ou delegado.
Ele não consegue entender o absurdo de sua frase. Como é que o líder máximo de um partido que dominou o País com uma corrupção sistêmica, com tantos companheiros na cadeia, continua se achando o mais honesto do País?
Lula e Dilma vivem ainda na fase da negação. O que prolonga essa ilusão é a certeza de que muitos não conhecem os fatos e os tomam por perseguidos políticos. E que os círculos mais próximos continuam coniventes com tudo o que aconteceu na presunção de que o cinismo é a única alternativa num mundo em que os fatos importam menos que as narrativas.
Os ventos que sopram de Curitiba podem congelar essas ilusões. Marcelo Odebrecht, José Dirceu e João Vaccari Neto, a julgar pela ideia de leniência partidária, descobriram que acabou o tempo de fingir que não aconteceu nada.
Aprender com os caídos torna a própria queda menos dolorosa. Não posso garantir que a verdade liberta. Ela pode levar gente para a cadeia. Mas seu efeito positivo será uma lufada de vento fresco na política brasileira.
O faz de conta vai acabar e a realidade que nos espera é um sistema político em ruína. Pode ser o marco inicial da reforma.
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*Fernando Gabeira é jornalista
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