domingo, 4 de setembro de 2016

Temer diz uma coisa e seu contrário - Elio Gaspari

- O Globo

Empossado na Presidência da República, Michel Temer apareceu duas vezes aos brasileiros. Numa primeira fala, gravada no Jaburu e transmitida à noite, prometeu “um país reconciliado, pacificado”. Na segunda, durante uma reunião do ministério, era outra pessoa: “Agora nós não vamos levar ofensas para casa.” Não se tratava de responder apenas aos que o insultam chamando-o de “golpista”. Diante da divisão de sua base de apoio, que preservou os direitos políticos de Dilma Rousseff, soltou-se: “Se é governo tem que ser governo. É [uma] divisão, também inadmissível. (...) O que não dá é para aliados nossos se manifestarem lá, no plenário, sem ter uma combinação conosco.” No dia seguinte o “inadmissível” virou um “pequeno embaraço”.

Pela clave do “inadmissível” ele não pacificará nem a bancada governista, cujos usos e costumes conhece como ninguém. A ideia de que o Planalto manda e o Congresso obedece destruiu Dilma Rousseff e Fernando Collor. Temer pode acreditar até em disco voador, mas não acredita nesse tipo de ordem unida.


Na simultaneidade e no antagonismo das duas falas expôs-se de forma surpreendente a opção preferencial do atual presidente pela ambiguidade. Não foi ele quem divulgou o teor da carta que enviou a Dilma Rousseff no ano passado. Vá lá. O áudio em que se apresentou como pretendente à “reunificação do país” teria sido conhecido por “acidente”. Essa já é mais difícil.

Instalado no Planalto, Temer ofereceu ajuste fiscal e contenção de despesas. Aliviou dívidas de estados que descumpriram contratos e abençoou um aumento salarial do ministros do Supremo Tribunal, com seu efeito cascata. Temer quer sanear as finanças e, no Brasil de hoje, só um doido acha que as contas públicas podem continuar como estão. Mas, durante seu breve governo, o demônio sempre esteve nos detalhes, e ganhou todas. As mudanças na legislação que regula obras e concessão públicas e levadas para a cozinha do palácio saíram das dipensas das empreiteiras.

Temer deu 31 anos de fidelidade política ao PMDB, mas ganha uma viagem ao Quênia quem souber o que isso significa. É certo, porém que sempre evitou bolas divididas. Seu temperamento reservado abriga uma personalidade enigmática. Move as mãos, mas não mexe os músculos do rosto nem altera a voz. De certa maneira, lembra Alec Guinness no papel do principe beduíno Faiçal do filme Lawrence da Arabia. Numa interpretação magistral, Sir Alec falava só com os olhos. Temer, nem isso.

Itamar Franco só achou um rumo quando chamou Fernando Henrique Cardoso para o ministério da Fazenda, José Sarney só conseguiu isso quando, abatido, recolheu-se à ilha do Curupu. A direção de Temer é uma incógnita. Mesmo que suas palavras tivessem o dom de gerar realidade, os dois discursos do dia de sua posse mostram que aquilo que parece ser um enigma é apenas um enigma.

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