• Afinal, em todos os quadrantes, hoje não se cultua o Cavaleiro da Triste Figura?
- O Estado de S. Paulo
Não dá para recusar: por mais desalentadora que tenha sido essa eleição com tantas abstenções, votos em branco ou nulos, ela estabeleceu um marco divisório na política brasileira. Não certamente pelo advento de novas narrativas que trouxessem alento para uma sociedade incerta dos seus caminhos quanto a seu futuro, menos ainda pelo surgimento de novas identidades coletivas ou de personagens que semeassem palavras de esperança, que nos faltaram. Mas, se ela não nos traz o novo, enterra um passado que nos tem pesado como chumbo, nesse longo ciclo errático que vai de Vargas a Lula-Dilma, em que temos sido prisioneiros do processo de modernização por cima que nos trouxe ao mundo com seu culto à estatolatria – do Império de um visconde do Uruguai à República com a linhagem que se inicia com Oliveira Vianna.
Se agora tateamos com o olhar perdido na longínqua sucessão presidencial de 2018, não foi por falta de avisos. Tanto os pequenos abalos que passaram a agitar a superfície da cena política quanto o grande movimento sísmico das jornadas de junho de 2013 não nos serviram para uma incontornável mudança de rumos. Fizeram-se ouvidos moucos a eles, com a presidente Dilma Rousseff, candidata à reeleição no ano seguinte àquelas jornadas de multidões em protesto contra a política tal qual a praticamos, sustentando em campanha eleitoral – em que prometera “fazer o diabo” para vencer – os mesmos rumos malsinados do seu primeiro governo.
Perdidos em agitações estéreis, não reparamos no movimento da Terra que traz consigo a mudança das estações, metáfora famosa de Joaquim Nabuco em Minha Formação. Agora não adianta chorar o leite derramado. Está aí uma sociedade desencontrada da política, uma juventude que começa a descobrir o caminho das ruas pelo mapa de ideias de antanho, sem guias provados, os partidos em frangalhos, com as grandes corporações de Estado atuando sem freios, chegando a ameaçar o espaço do que deve ser reserva da soberania popular, às vezes mal escondendo o interesse próprio.
Essa é uma hora dos partidos e dos políticos, com o que ainda nos sobra deles, de iniciar um processo autocrítico, que para ser verdadeiro reclama a urgência da reforma das nossas instituições políticas, com a adoção de uma cláusula de barreira à representação parlamentar e o fim das coligações eleitorais nas eleições proporcionais, protegendo-se as minorias com os recursos de uma engenharia institucional adequada. Pois é da experiência consagrada que as democracias não tenham ainda encontrado solução melhor que a da representação política, sem prejuízo de que prosperem as formas de democracia direta, presença embrionária na Carta de 1988 que cumpre desenvolver. Sem ela não há salvadores da pátria que nos salvem.
Também é hora dos intelectuais, cuja intervenção em outros momentos difíceis foi seminal para o descortino de possibilidades que viessem a animar a imaginação dos brasileiros na construção do País, bastando lembrar, em rol sumaríssimo, o papel antes desempenhado por Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior e Mário de Andrade, cujas obras exemplares inovaram o repertório de nossas formas de agir e de pensar. Tanto a institucionalização da vida intelectual como a crescente especialização de suas atividades – caso extremo nas universidades –, processo que, em linhas gerais, se deve reconhecer como benfazejo, mas tem implicado um apartamento dos intelectuais da vida pública, contrariando uma larga tradição em que se comportavam, desde as lutas pelo abolicionismo, como um dos seus relevantes protagonistas.
Sintoma disso, entre outros, está na atual distância entre eles e os partidos, a quem caberia fecundar com ideias e imaginação. À falta dessa relação vital, estão cada vez mais confinados às páginas de opinião dos grandes jornais e das redes da internet, o que, se importa, é pouco para o que se pode esperar da sua contribuição.
Nesse cenário, em que medram as agitações estéreis de que falava Nabuco, como se viu ao longo do processo recente de impeachment, pode caber espaço para a menção a um manifesto de intelectuais brasileiros em favor do que designam como a ética do convivialismo. Convivialismo, na conceituação do seu principal inspirador, o sociólogo francês Alain Caillé, professor emérito da Universidade de Paris-Nanterre, “é o nome dado a tudo o que nas doutrinas existentes, laicas ou religiosas, concorre para a busca de princípios que permitam aos seres humanos ao mesmo tempo rivalizar e cooperar, na plena consciência da finitude dos recursos naturais e na preocupação partilhada quanto aos cuidados com o mundo” (Manifesto Convivialista – Declaração de Interdependência, São Paulo, Annablume, 2016).
Seus autores, secundados por apoiadores de nomes notáveis da ciência social contemporânea, como Edgar Morin e Chantal Mouffe, e dos brasileiros Gabriel Cohn e Luís Roberto Cardoso de Oliveira, entre muitos outros, esclarecem que não se trata de uma doutrina com a pretensão de se sobrepor a outras, mas sim de reter, em oposição à financeirização do mundo em curso, “o que há de mais precioso” em cada uma delas. Frédéric Vandenberghe, sociólogo do Iesp, principal animador do movimento na universidade brasileira, define-o como uma ideologia que visaria a incorporar o melhor do liberalismo, do socialismo, do comunismo, do anarquismo e do feminismo numa visão de “boa vida com os outros em instituições justas”.
Embora bem ancorados no legado de Marcel Mauss, Karl Polanyi e Antonio Gramsci, os que subscrevem o documento e seus apoiadores, que não contam com forças próprias, salvo as ético-morais, vão precisar de muita energia para se livrar da pecha de quixotismo e levar suas ideias à frente. Mas, em todos os quadrantes, hoje não se cultua o Cavaleiro da Triste Figura?
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* Sociólogo, PUC-Rio
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