sábado, 11 de novembro de 2017

José de Souza Martins: O triunfo do precário

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

A precariedade e a improvisação, maiores indicações do nosso atraso econômico e da nossa criatividade social compensatória, continuam sendo os fatores entre si opostos de sustentação da modernidade brasileira. A contraditória modernidade da evolução na involução.

O matemático Lewis Carroll, um lógico, portanto, diz, em uma de suas obras de literatura do absurdo, "Do Outro Lado do Espelho", que quanto mais Alice caminhava, mais longe do destino ficava. Algo que temos visto por aqui também, no que parece ser um Brasil de ficção. Na polêmica com o ovo antropomórfico Humpty Dumpty, sobre a força da palavra de quem tem poder, ouviu ela uma lição penosa, do tipo que estamos cansados de ouvir nos discursos oficiais sobre o primado da economia e da política econômica sobre os outros âmbitos do viver:

"Quando eu uso uma palavra", disse-lhe Humpty Dumpty em tom de desafio, "ela significa exatamente o que eu decidi que signifique - nem mais nem menos". "A questão", disse-lhe Alice, "é se você pode fazer com que palavras signifiquem diferentes coisas". "A questão é", respondeu-lhe Humpty Dumpty, "quem manda - isso é tudo".

Na leitura de "Dom Quixote de la Mancha", de Miguel de Cervantes, pode-se entender que o cavaleiro da triste figura é quem pensa que sabe e manda e o pobre Sancho Pança é o homem comum, que finge não saber. É, no entanto, dotado da sabedoria prática dos simples, tão necessária à sobrevivência. Em "Alice do Outro Lado do Espelho", pode-se encontrar essa mesma relação de diferença: Humpty Dumpty, a presunção do poder, e Alice, a simplicidade do bom senso. Num caso, o subalterno e, noutro, a imatura negam as fantasias de quem manda porque podem decifrar em silêncio o avesso do poder e da economia em nome da qual é exercido. É o avesso que governa as estratégias de sobrevivência dos simples.

O economista inglês sir Dennis Robertson, prefaciado por John Maynard Keynes, publicou em 1922 um livro notável sobre o dinheiro, "The Money", em que cada capítulo tem por epígrafe uma citação de um dos livros de Lewis Carroll. Um clássico da literatura do absurdo como contraponto de um tratado de economia. Algo muito distante do modo de pensar e de decidir dos políticos e dos economistas do poder. Sem juízo crítico de referência social, erram quando não reconhecem nem temem a sabedoria popular.

Uma mãe de família sabe intuitivamente mais da economia de alimentos do que muitos técnicos dedicados a reformas econômicas. Seu cálculo se baseia em pressupostos de economia moral. Mais do que mera compradora de alimentos para o dia a dia de sua família, é sobretudo juíza de quanto do bem e do mal está embutido no desencontro entre os preços que paga e os salários que os membros de sua família recebem.

Apesar de tudo que os sábios do supérfluo sabem dizer, há um capital social acumulado na cultura popular que não é compreensível com base nas simplificações retilíneas do saber econômico. Um saber que é bom para ganhar dinheiro, mas que geralmente é péssimo para fazer justiça social e, sobretudo, para fazer política. Se a política econômica suprisse satisfatoriamente as funções da política propriamente dita, os políticos seriam dispensáveis. Mesmo que muitos deles sejam péssimos, como estamos vendo, os bons que restam são imprescindíveis na função moderadora de administrar as tensões, misérias, injustiças e problemas sociais que a economia gera e os políticos que a pensam como economia pessoal multiplicam.

É daquele capital social que se vale o excluído, o desvalido, o simples quando a sabedoria oficial cria crises sociais, como o desemprego, a injustiça, as crises políticas. As informações sobre a lenta recuperação da economia, não obstante a não recuperação do emprego formal, disfarçam o "jogo do contente" a que os explicadores do inexplicável recorrem, valendo-se da célebre fórmula de Pollyana, personagem de livro de Eleanor H. Porter, de 1913. Era ela a menina órfã e alienada, como nós, que via sinais positivos mesmo nas grandes adversidades. Era seu modo de sobreviver.

Sou tentado a supor que, de tão acostumado a ter que socorrer o país com meios próprios, o povo já se desinteressou das fórmulas e regras oficiais. Prefere as suas. Agora mesmo, dados do PNAD, como mostrou Thais Carrança em matéria da semana passada, aqui no Valor, indicam que "foram geradas 1,1 milhão de vagas no terceiro trimestre (...). Desse total, 402 mil são trabalhadores por conta própria... (...) Na contramão, o setor privado com carteira assinada perdeu 31 mil postos de trabalho no período". Não são os sábios de carteirinha que estão salvando a situação, mas os da desdenhada sabedoria popular e criativa.

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José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de 'Fronteira - A Degradação do Outro nos Confins do Humano', (Contexto).

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