- Folha de S. Paulo
Sistema de Justiça deve ser capaz de coibir desvios sem violar as leis
“Democracia em Vertigem” (“The Edge of Democracy”, Netflix) de Petra Costa é um documentário forte e honesto sobre o vendaval político que começou a varrer o país em 2013.
O filme nos deixa cara a cara com o ódio das ruas que levou ao extremo a polarização entre os brasileiros, engendrou o impeachment de Dilma, estraçalhou o sistema partidário e abriu caminho a Jair Bolsonaro.
A obra, porém, tem uma explicação discutível para o envolvimento do PT em atos de corrupção, não obstante ter sido adotada, às vezes, também por setores do seu inimigo íntimo, o PSDB.
Segundo a autora, os dirigentes petistas se renderam à lógica do presidencialismo de coalizão. À falta de maioria parlamentar obtida nas urnas, tiveram de comprá-la no balcão do Congresso dominado por elites políticas conservadoras.
Em um depoimento de admirável franqueza, Gilberto Carvalho, o mais próximo dos próximos de Lula e ministro-chefe da Secretaria de Governo sob Dilma, admite que o PT se enganou ao supor que poderia se comportar como os outros partidos levados ao poder, sem se dar conta de que muito diferente seria a reação das elites a um partido de origem popular.
Jogar a culpa do malfeito nas instituições políticas responsáveis pela fragmentação partidária e no presidencialismo de coalizão pode apaziguar a alma petista e a de alguns tucanos.
Não serve, entretanto, para explicar por que o conluio entre governo e empresas privadas também ocorreu em administrações municipais do PT —notadamente na cidade de Santo André— e no longo período em que o PSDB governou São Paulo.
Nas democracias, como se sabe, dinheiro é um instrumento poderoso na competição pelo voto: permite construir e azeitar máquinas partidárias, financiar gastos de campanhas, incluindo pesquisas, programas de rádio e TV, caravanas, santinhos, faixas, cabos eleitorais —o que se queira. É crucial para chegar ao governo e nele permanecer.
Mas não há evidência sólida de que o uso ilegal de recursos públicos ou privados dependa da forma de governo —parlamentarista ou presidencialista, unipartidário ou de coalizão.
A corrupção segue como sombra fiel a política democrática. Evitá-la é mais provável quando é viva e visível a aversão popular a ela; quando a imprensa vigia de perto o processo; quando as regras do financiamento eleitoral, bem desenhadas, impedem o manejo escuso de recursos; e quando o sistema de justiça —Ministério Público e magistratura— é capaz de coibi-la sem violar as leis.
Sem isso, a luta contra a corrupção vira bandeira demagógica de justiceiros e salvadores da pátria. Em geral, de direita.
*Maria Hermínia Tavares de Almeida, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.
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