terça-feira, 4 de agosto de 2020

Ana Carla Abrão* - Legalidade x moralidade

- O Estado de S.Paulo

Estamos nos acostumando com a desigualdade social, a exclusão e o clientelismo

As manchetes não surpreendem mais, infelizmente. É possível que já estejamos acostumados. Mas ainda assim vale trazer algumas delas à tona, só para fazer o ponto. Numa rápida pesquisa, encontrei alguns exemplos nas primeiras páginas do Estadão, da Folha de S. Paulo e do Valor Econômico: “Mais de 8.000 juízes receberam acima de R$ 100 mil mensais ao menos uma vez desde 2017”; “Militar quer ‘suas’ estatais fora do teto”; “Penduricalho a militares custará R$ 26,5 bilhões em cinco anos”; “Metade das isenções fiscais é feita à custa de menores receitas para a Previdência”; “Sancionada lei que isenta templos religiosos de ICMS até 2032”; “Pobre paga mais imposto que rico”; “Centrão mira orçamento de R$ 78,1 bi com cargos; “TCU alerta para a falta de transparência na concessão de isenções fiscais”; “Bolsonaro pressiona Receita Federal a perdoar dívidas de igreja evangélica”; “Aposentados da Alesp têm bônus por desempenho”; “Vale-refeição de juízes supera salário mínimo em 24 Estados”; Catorze Estados estouram o limite de gastos de pessoal”; “Reajustes nas contas de água bancam alta de salários”; “65% dos juízes recebem mais do que o teto, diz pesquisa”; “Assembleia de SP tenta criar ‘auxilio veículo’”.

Há tantas outras manchetes que daria para encher o espaço da coluna, mas não é esse o intuito. O objetivo aqui é o de chamar a atenção para o resultado do conflito distributivo que opera há décadas no Brasil e que pende, invariavelmente, em favor de uns poucos e em detrimento de muitos.

Sem entrar no mérito da legitimidade ou não dos pleitos individuais, o que falta é colocá-los todos em perspectiva e avaliá-los à luz da nossa realidade. Afinal, a base que se estabeleceu para o atendimento dos pleitos mais ou menos legítimos (quando não mais ou menos republicanos) se assenta na divisão do orçamento público e, portanto, nas escolhas políticas que são feitas pelos nossos governantes. Desde há muito, mas em particular a partir da Constituição de 1988, o clientelismo se juntou à força do corporativismo público e privado e vêm juntos definindo a apropriação de parcelas crescentes dos orçamentos por parte de grupos organizados.

Ao final, sobra cada vez menos – ou quase nada – para ser distribuído para a maioria da população cuja representatividade e pleitos são diminuídos dia a dia. Sobram para esses uma educação pública de baixa qualidade, um atendimento de saúde precário, um Bolsa Família, um auxílio emergencial e, com sorte, uma cesta básica.

Uma forma de se quantificar o tamanho da apropriação do Estado por grupos específicos de interesse seria fazer a conta de quanto dos 94% de gastos obrigatórios são distribuídos para o atendimento na ponta das demandas da população vis-à-vis o que se distribui de forma direcionada em benefício de alguns. No caso de Estados e municípios o número seria certamente ainda mais chocante.

Basta considerar a vinculação de receitas e de gastos a decisões no nível federal, além do nível de comprometimento com despesas de pessoal e a representatividade (e rigidez) dos Poderes autônomos nos orçamentos estaduais. Se ainda somássemos a isso uma avaliação de impacto dos bilhões em renúncia tributária, certamente entenderíamos com clareza a dimensão da captura do Estado brasileiro e seus efeitos distributivos. Não, não é por acaso que a conta nunca foi feita.

Mas em tempos de pandemia sobram motivos para se refletir – ou ao menos para se alertar, sobre os absurdos da alocação de recursos públicos no Brasil e sobre sua perversidade. Afinal, o País caminha para tempos ainda mais duros e se vê hoje numa discussão (repetida) sobre a conveniência ou não do teto de gastos. Vale lembrar que embora o teto vise à controlar o crescimento dos gastos públicos, a sua função primordial é outra: a de explicitar a natureza do conflito distributivo para que os agentes públicos, como representantes da população brasileira, façam suas escolhas com clareza. Ignorar que hoje vivemos num constante rouba monte de recursos públicos e que esses são escassos e limitados, não fará as restrições sumirem nem tampouco levará a uma alocação melhor e mais justa. Ao contrário, perpetuará e agravará a apropriação do Estado pelos que mais podem, mais gritam e mais pressionam, além de comprometer de forma definitiva nossa capacidade de solvência com os efeitos econômicos sabidamente indesejados.

Se essa discussão não foi feita ainda na sua profundidade – e apesar das manchetes gritantes dos jornais –, é hora de perseverar nela, pois essa é mais uma prova de que não será nos livrando do teto que a faremos.

A resposta de um juiz à informação de que pagamentos acima do teto remuneratório são corriqueiros no Judiciário foi clara: “Tudo dentro da legalidade”, disse ele. Mas temos de nos lembrar que se a lei é imoral, a legalidade nada significa senão a legitimação daquilo que não se justifica. Nosso País está se acostumando com a imoralidade que são a desigualdade social, a exclusão, a falta de oportunidade, o clientelismo e a preservação de garantias que avançam sobre o direitos do outros. De muitos outros.

*Economista e sócia da Consultoria Oliver Wyman.

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