A
impressão é a de que Jair Bolsonaro não só ficará pelo tempo regulamentar como
poderá repetir a dose e permanecer oito anos na chefia da nação
No
primeiro ano de governo, a impressão mais ou menos generalizada era a de que
Jair Bolsonaro não se aguentaria no cargo porque o país simplesmente não
aguentaria quatro anos “disso daí”: um presidente hostil, criador de casos,
defensor de causas retrógradas, refratário aos preceitos mínimos da civilidade
e, sobretudo, desprovido de preparo adequado para o exercício da função.
Pois
bem. Quase dois anos e uma pandemia depois, a impressão mais ou menos
generalizada é a de que Jair Bolsonaro não só ficará pelo tempo regulamentar
como poderá repetir a dose e permanecer oito anos na chefia da nação. Esta
passou a ser a previsão corrente desde que o presidente resolveu dar uma de
pessoa “normal”, adaptando-se às circunstâncias da política tradicional (para o
bem e para o mal). Colheu bons frutos nas pesquisas de avaliação e pôde, com
isso, perceber quanto o assistencialismo é bom de voto.
Intuitivo como costumam ser os populistas acometidos por déficit cultural/educacional, ao menos nesta nossa seara tropical, Bolsonaro olhou o movimento dos ventos, sentiu o aroma do ambiente, mediu custos, contabilizou benefícios e ajustou o rumo da sua prosa. Nesse aspecto, o presidente não seguiu o modelo do ídolo americano. Donald Trump recrudesceu no estilo durante a campanha eleitoral e, com isso, segue perdendo terreno para o adversário, Joe Biden.
Se
o vaticínio das pesquisas se confirmar e Trump não for reeleito, ficará
reforçado em Bolsonaro o acerto da decisão de baixar a bola da agressividade e
deixar a agenda regressiva num plano secundário. Ele tem tempo, um ativo
essencial obtido com a mudança no ritmo e na direção do passo. Fica no ar a
pergunta sobre o prazo de validade dessa alteração de procedimentos.
Embora
pertinente, a dúvida não é consistente. Ninguém muda de personalidade aos 65
anos, ainda mais, como é o caso, quando a transformação se dá por razões
táticas e/ou estratégicas. Naquela toada de confrontos e defesa de uma agenda
obsoleta nos costumes, na política, na ciência, negativista da evolução da
espécie humana, Bolsonaro não chegaria a lugar algum além dos limites da bolha
de fiéis.
O
presidente atuava em cenário irreal, preso a um passado de cinquenta, sessenta
anos atrás, hoje irreconhecível para a maioria de uma população jovem como é a
do Brasil, e de valores tidos como inaceitáveis por aquela minoria responsável
pela indução e condução de processos de desenvolvimento. Ademais, comprava
brigas no Congresso e no Supremo Tribunal Federal que não tinha condições
objetivas de enfrentar devido às fragilidades dele e da família nos campos
político e judicial.
“Se
Trump não ganhar, Bolsonaro verá reforçado o acerto da mudança no rumo da prosa
agressiva”
Como
dito acima, Bolsonaro tem tempo. Inclusive para fazer cicatrizar as feridas
abertas entre os devotos insatisfeitos com o que interpretam como desvio do
caminho original. Acenos, embora amenos, nesse sentido têm sido feitos.
Nada
impede que lá na frente, na hora do vamos ver (se sai mesmo essa reeleição), o
presidente refaça o compromisso com a retomada do autoritarismo, com padrões de
comportamento superados, com a visão de que proteção ao meio ambiente é coisa
de maconheiro, com a caça aos comunistas inexistentes e quimeras tais.
O
presidente-candidato terá, então, duas vantagens: o fato de os fiéis não terem
para onde correr e o desgaste das teses estapafúrdias que pode levar parte
significativa do eleitorado a considerar Jair Bolsonaro devidamente vacinado e
curado da doença senil do obscurantismo. Isso se não levar em conta que
mudanças na política obedecem ao sabor e ao ritmo dos ventos.
OS
INTOCÁVEIS
A
preocupação dos responsáveis pela introdução no Código de Processo Penal do
dispositivo que resultou na liberação e fuga de um traficante já condenado em
duas instâncias judiciais não foi com o contingente de possíveis injustiçados
que mofam nas cadeias sem condenações. A ideia era desferir um golpe na
Operação Lava-Jato e estancar a ofensiva da aplicação da lei àquelas até então
intocáveis.
Uma
gente travestida de defensora do estado de direito, mas que não dava a mínima
quando esse mesmo estado de direito era permanentemente agredido pela regra
geral da impunidade, cujo interesse primordial é a defesa do império da
tecnicalidade independentemente das consequências.
No
benefício concedido ao traficante em questão esteve presente a evidência de que
um tiro no abuso de autoridade pode se configurar abusivo para a sociedade.
*Publicado em VEJA de 21 de outubro de 2020, edição nº 2709
Nenhum comentário:
Postar um comentário