IBGE
disparou o alerta quando contou 10,3 milhões com privação alimentar grave em
2017-2018
Por
uma porção de conveniência política e um punhado de incompetência técnica, o
governo de Jair Bolsonaro adiou para depois das eleições 2020 a decisão sobre a
política social no pós-pandemia. Na prática, ficará para 2021, já que o segundo
turno do pleito municipal está marcado para 29 de novembro. Assim, ignorou-se
descaradamente a regra número um de quem se ocupa do combate à extrema pobreza:
quem tem fome tem pressa. A frase eternizada pelo sociólogo Herbert de Souza, o
Betinho, deu na cruzada brasileira pela erradicação da miséria; desaguou no
Fome Zero, no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva; emendou no Bolsa
Família. Rendeu a saída do Brasil do Mapa da Fome da ONU, no início desta
segunda década do século XXI, que chega ao fim com o recrudescimento da
insegurança alimentar.
O
aumento da vulnerabilidade social mundo afora, durante a pandemia da Covid-19,
explica o Nobel da Paz concedido ao Programa Mundial de Alimentos, WFP da
abreviação em inglês. A agência da ONU foi reconhecida pelas ações de combate à
fome, por melhorar condições de paz em áreas de conflito e por atuar contra o
uso da falta de alimentos como arma de guerra, informou o comitê norueguês do
prêmio. Resumindo em hashtag: #comidaépaz. Segundo as Nações Unidas, o WFP é a
maior organização humanitária do mundo; em 2019, assistiu 97 milhões de pessoas
em 88 países. Foi festejada pela complexa logística que construiu para levar
alimentos onde há fome na África, na Ásia e na América Latina. Opera com mais
de cinco mil caminhões, uma centena de aviões, 30 navios.
O
relatório “Estado da insegurança alimentar e nutricional no mundo”, lançado em
julho por cinco agências da ONU, estimou que, em 2018, pelo menos 820 milhões
de pessoas passavam fome no planeta. O diagnóstico já punha em risco a meta de
universalizar o acesso a alimentos até 2030, conforme estabelecido nos
Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Com a pandemia da Covid-19, a
situação se agudizou. Em meados deste ano, as estimativas chegavam a 132
milhões de novos famintos, em decorrência da recessão global. Para conter a
escalada, o WFP anunciou que precisaria arrecadar US$ 6,8 bilhões nos próximos
seis meses; até o início da semana, conseguira um quarto. A Oxfam calculou que,
de março a junho deste ano, 73 bilionários da América Latina e do Caribe,
Brasil incluído, ficaram US$ 48,2 bilhões mais ricos.
No
Brasil, o IBGE disparou o alerta quando contou 10,3 milhões de brasileiros com
privação alimentar grave no biênio 2017-2018. Foi consequência da recessão
profunda dos anos anteriores, que a recuperação modesta do triênio 2017-2019
não superou e, agora, retorna com a pandemia. Em projeções otimistas, o PIB
brasileiro cairá 5% em 2020. O auxílio emergencial de R$ 600, pago a 67,8
milhões de pessoas até agosto, ajudou a aplacar os efeitos socioeconômicos da
crise sanitária. Mês passado, o governo decidiu, por restrições orçamentárias,
cortá-lo à metade e prorrogá-lo até dezembro. A decisão é insuficiente para dar
conta da vulnerabilidade avassaladora. Na última semana de setembro, o país
tinha 13,3 milhões de desempregados e outros 15,4 milhões de trabalhadores que
só não buscaram ocupação por causa da pandemia ou falta de vagas.
Para
piorar, a inflação dos alimentos é galopante. O Indicador Ipea de Inflação por
Faixa de Renda mostrou que, em setembro, a variação de preços para os lares com
renda mensal inferior a R$ 1.650 ficou em 0,98%, o triplo da observada entre os
mais ricos (acima de R$ 16.509,66). Preços da alimentação explicam 75% da
carestia. Desemprego alto, queda de renda, escalada no valor da comida,
crianças sem aula e sem merenda resultarão em aumento da pobreza extrema. Por
isso, é tão urgente que o país ponha de pé uma política social robusta.
A
equipe de Paulo Guedes e os interlocutores do ministro da Economia no Congresso
Nacional têm se ocupado mais do debate fiscal que da arquitetura do programa
que coexistirá ou substituirá o bem desenhado Bolsa Família — este voltado à
erradicação da miséria a médio e longo prazos, via transferência de renda
vinculada a exigências em educação e saúde. A emergência é assemelhada ao
alerta de Betinho em 1993, ano de lançamento da Ação da Cidadania Contra a Fome
e a Miséria. O Brasil foi capaz de transformar a mobilização da sociedade civil
em política pública. Alcançou a própria ONU: Fome Zero batiza o segundo dos 17
Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. O brasileiro José Graziano da Silva,
que esteve no governo, presidiu a FAO, agência da ONU para Alimentação e
Agricultura, de 2012 a 2019. Ano passado, na despedida, foi homenageado pelo
WFP.
O movimento social faz o que pode. A Central Única de Favelas já distribuiu 1,350 milhão de cestas de alimentos e 59 mil vales de R$ 120 a mulheres chefes de família. A ajuda soma R$ 169 milhões. No Complexo do Alemão, o gabinete de crise distribuía cinco mil cestas básicas por mês no início da pandemia; hoje, o jornal “Voz das Comunidades” segue doando 600. A ONG Redes da Maré, de março a setembro, atendeu 17 mil famílias com kits de alimentos e itens de higiene. São apoios fundamentais, mas que não prescindem do Estado. O Brasil tem história, tecnologia social e gente capaz. É sair da política rasteira e agir.
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