Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Brasil só vai ter futuro melhor se
incorporar mais grupos em sua governança, estabelecendo diálogo entre eles
O aspecto que chama mais a atenção na
comemoração dos 200 anos de Independência é a falta de uma celebração coletiva
e plural da sociedade brasileira. O que sobrou são poucos festejos oficiais,
sendo que Bolsonaro fez pior do que a ditadura militar: usa os recursos do
Estado para dividir a nação e fazer campanha personalista em prol de sua reeleição.
A questão é que o sectarismo bolsonarista
impede a reflexão sobre a trajetória passada e recente do país, destrói as
instituições e enfraquece o sentimento de pertencimento nacional. Para sair
dessa enrascada, o Brasil só vai ter um futuro melhor se incorporar mais grupos
em sua governança, estabelecendo diálogo entre eles e criando um novo
equilíbrio político.
Sair da situação sectária e sem diálogo em
que estamos é fundamental para reconstruirmos as instituições políticas e as
políticas públicas atingidas por Bolsonaro. Há uma longa lista de tarefas. Em
primeiro lugar, setores governamentais foram, em maior ou menor grau,
desmontados.
Esses são os casos do Sistema Único de
Saúde (SUS), da política educacional, da longa tradição diplomática, da burocracia
e da legislação ambientais, da área de cultura, da proteção das comunidades
indígenas, dos serviços e programas de assistência social, dos programas
habitacionais, do embrionário modelo do Sistema Único de Segurança Pública e
das ações no campo dos direitos humanos. Quase todo o Estado brasileiro sofreu
um processo de deterioração institucional.
Em cada uma dessas políticas públicas será necessário apaziguar o conflito gerado pelo bolsonarismo, retomar o diálogo com os atores estratégicos, trazer de volta o que havia de bom e corrigir o que precisa se adequar às novas demandas do século XXI. De todo modo, o objetivo é sair da lógica das guerras culturais e estruturar os programas governamentais de forma profissional, baseando-se em evidências e no expertise de técnicos governamentais e especialistas que trabalham há anos com o assunto.
Isso não quer dizer que as políticas
públicas sejam marcadas apenas por consensos. Há divergências e um leque de
alternativas para resolver problemas públicos relevantes. Por esta razão será
necessário reconstruir o Estado por meio do diálogo e adotando como mantra a
noção de equilíbrio, que significa aqui fazer mudanças incrementais que não
levem a um jogo de soma-zero no qual o “vencedor leva tudo”.
A reconstrução do país passa também pela
recuperação de instituições fundamentais à democracia brasileira. O federalismo
foi uma das estruturas centrais do Estado brasileiro mais atingidas pelo
autoritarismo bolsonarista. É preciso voltar a um modelo intergovernamental
mais cooperativo, com diálogo, atuação conjunta e respeito às autonomias
subnacionais. Alianças com governadores e prefeitos vão ser fundamentais para
colocar novamente nos trilhos e aperfeiçoar as políticas de saúde, assistência,
educação e meio ambiente.
Ademais, é fundamental que haja
contrapontos ao governo federal, pois a Federação é um dos contrapesos
democráticos da República, de maneira que o presidente deverá procurar um
equilíbrio federativo frente às visões e posições regionais.
Trazer de volta a independência do comando
do Ministério Público Federal é outra tarefa fundamental para o próximo
quadriênio. Se é verdade que o MPF cometeu alguns abusos nos últimos anos, mais
fortemente na gestão de Rodrigo Janot, e que existem ações corporativas da
instituição que precisam ter maior accountability, também é correto dizer que
não é possível que o Procurador Geral da República seja um advogado de defesa
do presidente - para isso já há a AGU. Novamente a palavra de ordem é
equilíbrio, com o concomitante fortalecimento do controle e da
responsabilidade.
As relações do Executivo com o Supremo
Tribunal Federal nunca estiveram tão deterioradas. Obviamente que o modelo
decisório do STF precisa ser aperfeiçoado, aumentando a quantidade e a
celeridade das decisões colegiadas, dando mais segurança jurídica e protegendo
os próprios ministros da crítica mais destemperada sobre suas decisões.
Independentemente disso, a afronta
autoritária de Bolsonaro contra a Justiça é perigosíssima e deixou um legado
maldito: há hoje mais apoio no Congresso para se aprovar uma emenda
constitucional que aumenta o número de ministros de 11 para 15 vagas. Essa
ampliação seria a antessala para um regime mais autocrático caso haja a
reeleição. E mesmo se outra candidatura for vencedora, uma alteração dessa
magnitude é uma distorção institucional. A sociedade tem de se posicionar
contra essa medida.
O presidencialismo de coalizão é mais um
dos abatidos pelas ações bolsonaristas. Num primeiro momento, o presidente não
quis fazer nenhuma negociação contra o Congresso Nacional, adotando uma visão
antipolítica (e autoritária) quase ingênua, que se transformou em ilusão quando
percebeu que sofreria um impeachment se não tivesse apoio parlamentar. Daí em
diante, Bolsonaro fez um pacto macabro com o Centrão baseado em dois elementos
perversos para a vida republicana do país.
O primeiro foi a entrega de uma quantia
inédita de recursos diretos aos parlamentares via emendas, parte delas
referentes ao Orçamento secreto, cujo valor é de quase R$ 20 bilhões ao ano. O
resultado disso foi, de um lado, a destruição institucional do relacionamento
entre essas verbas e as políticas públicas, uma vez que uma enorme quantidade
de dinheiro foi extremamente pulverizada e passa por fora dos programas
governamentais estruturados nacionalmente, tornando mais irracional o gasto
público. Além disso, por outro lado, a transparência governamental das despesas
foi fortemente reduzida, fazendo com que muitos prefeitos digam que nunca houve
tanta corrupção em transferências federais como há agora com o Orçamento
secreto.
Para evitar o impeachment, Bolsonaro foi
parceiro no aumento de poder de agenda do presidente da Câmara. Arthur Lira
está atropelando os ritos legislativos mais do que Eduardo Cunha tinha feito, o
que parecia algo impossível de ocorrer. Claro que esse poderio serve a ambos:
Lira aprova o que quer para criar aliados de longo prazo, enquanto
adicionalmente passa medidas que interessam ao Executivo, a fim de garantir a
reeleição do presidente e dos parlamentares aliados. Foi dessa maneira que
emenda constitucional foi aprovada em duas semanas, que o princípio republicano
sobre medidas que podem ser feitas pelo governo num período eleitoral foi
dinamitado. Esta é a segunda forma bolsonarista de implodir as bases
democráticas do presidencialismo de coalizão: transformar o jogo legislativo
num atropelo de normas básicas republicanas.
O Brasil tende a sair muito dividido dessas
eleições gerais. A Câmara Federal provavelmente terá uma composição majoritária
de centro-direita, mas com maior peso da centro-esquerda do que na legislatura
atual e com alguns partidos centristas dispostos a negociar para contrabalançar
o poder do Centrão comandado por Arthur Lira. Não haverá nenhum presidente
eleito com maioria imediata no Senado e aqui a negociação será ainda mais
complexa.
No plano federativo, se um dos líderes da
pesquisa vencer as eleições, seja Lula ou Bolsonaro, ele terá entre 12 e 15
governos estaduais eleitos por sua “oposição”. Seguir no roteiro bolsonarista
de confrontar os estados - e muitas capitais - deverá produzir uma enorme
dificuldade de governar o país.
O vencedor da eleição presidencial, quem
quer que seja, terá uma sociedade extremamente dividida para governar. Não
conseguirá melhorar a situação do país falando apenas para os seus eleitores.
No caso dos líderes das pesquisas, ambos teriam governos muito atribulados se
optarem pela sectarismo.
Seguindo esta linha, Bolsonaro seria
candidato a repetir o que ocorreu com Dilma no segundo mandato, pois o Centrão
atual (PP, PL e Republicanos) está preocupado em dominar as eleições municipais
de 2024, e não segurará um presidente impopular e radical. Já Lula, se não
ampliar rapidamente os apoios em direção ao centro e negociar sua agenda com
vários grupos sociais, poderia ser vítima da instalação do
semipresidencialismo.
A política do equilíbrio é a única forma de
o novo presidente reconstruir o país depois do vendaval destruidor do atual
período bolsonarista. Um bom exemplo inspirador para melhorar a governança do
Brasil é o livro “A democracia equilibrista”, de Pedro Abramovay e Gabriela
Lotta (Companhia das Letras). Nele, os autores mostram como o sucesso das
políticas públicas depende muito da combinação entre os ditames da política e a
visão dos especialistas. Ao combinar essas duas lógicas, os casos analisados
pelo texto revelam como é preciso conciliar a legitimidade do voto e a da
técnica, gerando diálogo e construção de consensos entre políticos e
burocratas.
O argumento do livro segue tão bem a lógica
da necessidade do equilíbrio que os prefaciadores são os ex-presidentes
Fernando Henrique e Lula, que tanto competiram eleitoralmente. Se dois
adversários podem concordar com o valor da compatibilização de posições
diferentes, é porque chegou a hora de o país exigir do próximo governo
temperança, parcimônia e muito diálogo. Fora desse esquadro, caminharemos para
um novo século independente sem aprender com os fracassos mais recentes da
nossa história.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas
Um comentário:
Excelente texto! Parabéns ao colunista e ao blog que o divulga! Como ele diz, Bolsonaro só queria um palanque pra chamar de seu, pago com verbas públicas pro palhaço usar como pidcadeiro, confundindo festividade do governo com comício de candidato... A pátria de Bolsonaro é sua FAMILÍCIA! Nem o pessoal do Centrão quis aparecer no comício da Independência protagonizado pelo Tchutchuca... E o "patriota" Bolsonaro nem compareceu na atividade oficial do Congresso que festejou nossa independência... O canalha não tem qualquer preocupação com a Democracia ou a Pátria, só quer aparecer e se manter no Poder, a qualquer custo. Mesmo tendo que se tornar a Tchutchuca que o Centrão manda e desmanda... Como um canalha assim vai se reeleger? Pra fazer mais m... e espalhar mais mentiras? Quando Geisel e seus generais diziam que Bolsonaro era bunda suja, eles ainda não tinham visto toda a m... que o capitão seria capaz de produzir. O colunista mostra isto de forma elegante!
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