Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
O homem comum tem dificuldade para perceber
que em países como o Brasil há ladrões honestos, isto é, os que são corruptos
nos procedimentos que redundam em seu enriquecimento
O destino político do Brasil tem sido
hipocritamente decidido pelo retorno cíclico da suposta honestidade de alguns
contra a suposta corrupção de outros. Em havido, até, governantes eleitos na
presunção autoproclamada de que são honestos, de uma imaculada honestidade que
salvará o país da suposta roubalheira dos demais. Corrupto é sempre o outro.
Temos até corruptos bentos. Ninguém explica, porém, que corrupção é essa nem
que honestidade é essa. E políticos provavelmente íntegros e melhores têm
deixado de ser candidatos e até de ser eleitos porque não conseguem provar e
convencer que não são desonestos. Coisas de um país do avesso.
Para entender esse país anômalo, cada vez
mais rico e mais pobre ao mesmo tempo, cujas irracionalidades econômicas,
sociais e políticas são produzidas, apoiadas e estimuladas pelo próprio
governo, é preciso compreender sua estranha e persistente formação.
Sua base histórica é o município. Desde os primeiros anos da Conquista, tornou-se ele a base da estrutura política brasileira e fundamento da superestrutura da administração pública, mesmo quando ela se desdobrou nos poderes das províncias, dos estados e da nação. Criou uma cultura política.
No início, o rei, isto é, o Estado, que
nada tinha, concedia terras de seu domínio e privilégios à pequena casta dos
“homens bons”, os puros de sangue e de fé, sua qualidade. Eles tinham a
obrigação de cristianizar o gentio em troca de seu trabalho, os chamados índios
administrados. Em troca de nada obtinham trabalho criador de riqueza.
O serviço da Conquista era remunerado com o
direito de saquear os nativos e a natureza, tudo juridicamente regulamentado.
Saquear o outro, os sem qualidade social, e ter a terra era um direito de
conquista, legitimado simbolicamente pelo rei em troca de tributos porque tinha
ele, da terra, o senhorio.
A acumulação de bens originários dessa
situação alterou as condições sociais, econômicas e políticas da formação
brasileira. Deu origem ao nosso subcapitalismo, que nunca chega a ser
capitalismo propriamente dito.
No entanto, a forma arcaica e
anticapitalista de reproduzir essa estrutura persistiu porque esse sistema
criou a legitimidade das diferentes modalidades de saque. Saquear o que é bem
público, como a terra, tornou-se um direito. Não é estranho que a criminalidade
fundiária persista como fator anômalo de acumulação não capitalista de capital.
Não é acidental que ainda persista o
trabalho escravo no Brasil e persistam formas antissociais de sobre-exploração
do trabalho, no trabalho doméstico, no mundo rural e até na indústria. E que
persista a grilagem de terras públicas que deveriam ser destinadas a um
programa de reforma agrária e de desenvolvimento do agronegócio familiar.
Sobretudo que persista a invasão das terras
indígenas, o comprometimento das condições de vida dos povos originários que,
em consequência, redunda em genocídio continuado. Tudo isso é corrupção. A
Constituição e as leis nos dizem isso.
É verdade que o conceito de corrupção nunca
foi empregado para designar os diferentes e sucessivos atos desse processo, ao
longo de nossa história, ou para designar seus autores como corruptos. Porque
essa era a naturalidade dos fatos.
Os beneficiários do saque prestavam um
serviço à Coroa, e muitos ainda acham que o prestam ao Estado ao desmatar e se
apropriar da madeira, escravizar trabalhadores para abrir novas fazendas,
sonegar impostos para aumentar sua taxa de lucro, “limpar” de índios as terras
indígenas. Muitos corruptos de hoje ainda acham que prestam um serviço ao
desenvolvimento do capitalismo.
Essa imensa subversão fundamenta a atrasada
concepção de política praticada por políticos. Apoia-se nas duplicidades
próprias da cultura política brasileira. Uma coisa é o que vem a ser corrupção
para os políticos e a disputa eleitoral. O que pode ser visto e compreendido
pelo povo e fica oculto no jogo de palavras e nos ardis da linguagem da
dominação política.
Outra coisa é o que vem a ser corrupção na
concepção do povo e do eleitorado. A corrupção dos políticos que eventualmente
se possa a eles atribuir tem códigos e tradições próprias. É ela um sistema, um
crime no centro de crimes conexos.
O que o homem comum tem dificuldade para
perceber é que em países como o Brasil há ladrões honestos, isto é, os que são
corruptos nos procedimentos que redundam em seu enriquecimento pessoal, de
família ou de grupo de interesse econômico e político.
No geral, o corrupto é tão virtuosamente
corrupto que cria, até cientifica e tecnicamente, o álibi de sua corrupção, a
máscara de honesto e santo de que carece para fazer com que sua corrupção
pareça o contrário do que é.
*José de Souza Martins foi professor titular de sociologia na Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94).Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Sociologia do desconhecimento Ensaios sobre a incerteza do instante" (Editora Unesp, 2021).
Um comentário:
Quanto esforço de retórica pra dizer que Bolsonaro é honesto mas que no fundo é um corrupto imaginário, enquanto Lula foi preso e condenado em três instâncias há mais de 20 anos por corrupção e lavagem de dinheiro por nove juízes .
Vocês passam pano quente, dizem que é o homem mais honesto e preparado para governar o Brasil é muita cara de pau!
As pesquisas já apontam vantagem de Bolsonaro sobre Lula
E isso é só o começo, prepararem os seus corações , presidente reeleito!
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