Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Há a enganosa suposição de que a fome de
ontem pode ser saciada com programas de alimentação de hoje ou de renda
adicional de agora
O levantamento, agora divulgado, feito pela
Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania Alimentar e
Nutricional), sobre a fome no Brasil, associado a outros dados do momento, como
os das várias pesquisas sobre tendências de voto do eleitorado, fazem-nos
revelações amargas. Somos um país tristemente à beira do abismo. Um país em
que, para muitos, a vida do outro não vale nada. Não só para quem governa como
também para uma parcela ponderável dos que votam.
O levantamento aponta que, em 41,3% dos
domicílios, os moradores vivem em estado de insegurança alimentar. Em 15,2%, 33
milhões de seres humanos vivem em insegurança alimentar severa, de fome.
Juntando-se a insegurança alimentar severa com a insegurança alimentar média
(15,5%), 30,7% da população está numa situação alimentar crítica: não tem o que
comer ou não tem o minimamente necessário para comer e sobreviver em condições
propriamente humanas.
Feita uma desagregação dos dados por variáveis adicionais, os pesquisadores verificaram que falta comida em um em cada três lares com crianças até 10 anos.
No Norte e Nordeste, a situação dessa
categoria social é muito mais grave. No Norte a insuficiência de alimentos para
todos de uma mesma casa alcança 51,9% dos lares. No Amapá, mais de 60%. No
Nordeste, o risco da fome é de 49% em lares com crianças até 10 anos de idade.
No Sul e no Sudeste, os índices parecem
melhores. Mas de fato não são. Ali, respectivamente, 43,2% e 38,4% “dos
domicílios com crianças menores têm acesso a alimentos em quantidade e
qualidade suficiente para todos os moradores”, assinalam Fernanda Mena e Josué
Seixas na “Folha de S. Paulo” em extensa análise do levantamento. Em São Paulo
e Rio de Janeiro, os índices de lares desse tipo que estão em melhor situação
de acesso à alimentação é de 37,6% e 33,3%. Portanto, nas regiões brasileiras
mais prósperas, a situação da imensa maioria das famílias com até crianças de
até 10 anos é também muito grave.
Há entre nós a enganosa suposição de que a
fome de ontem pode ser saciada com programas de alimentação de hoje, ou de
renda adicional de agora. No caso de adultos, a mitigação da fome certamente
quebranta em algum grau a sensação de estômago vazio. Mas não é isso que
acontece com crianças. A fome sonega da criança alimentos fundamentais para sua
formação, não só sua sobrevivência. Isso pode ser visto em famílias em que a
dieta é culturalmente errada.
Há situações e conjunturas em que a dieta
alimentar se torna quantitativa e qualitativamente imprópria e insuficiente.
Sou da geração que viveu os primeiros anos de vida na época da Segunda Guerra
Mundial. Havia falta de itens alimentares que dependiam de produtos importados,
como o trigo. Como tantos outros, somos um país que tem no pão um alimento
quase sagrado. O pão estava racionado. Cada família podia comprar apenas um
filãozinho de pão.
Alguns anos depois da guerra terminada, eu
estava começando a trabalhar, com 11 de anos de idade, e já não havia falta de
pão. Eu ia até uma padaria distante, onde o pão saía do forno às duas horas da
tarde, para, desde a porta, sentir-lhe o aroma. Eu ali ficava cinco minutos
aspirando o pão invisível na tentativa de saciar a fome que deixara marcas
profundas em minha memória.
Lá em casa, o mesmo acontecia com a carne.
Já no final da guerra, meu pai morreu, vitimado por imprudência hospitalar, de
tétano, numa operação de hérnia. Dois anos depois, minha mãe casou de novo e
fomos morar na roça, onde passei o 3º e o 4º ano primários.
Eu tinha que caminhar 16 km por dia, entre
a ida e a volta da escola. De manhã, uma caneca de café preto com duas colheres
de farinha de milho. No almoço, às duas da tarde, arroz, feijão e repolho cru.
Carne, só no sábado, dois bifes para quatro pessoas, cortados horizontalmente.
Passei por esse regime durante dois anos. Um dia, desmaiei na escola, de fome.
Quando voltamos para o subúrbio operário,
as limitações da alimentação continuaram, ainda que atenuadas. A dieta mudara
pouco. Comecei a trabalhar numa fábrica clandestina, 8 horas por dia, 6 dias
por semana. No dia em que recebi meu primeiro salário, cem cruzeiros, 17% do salário
mínimo prescrito por lei para o menor de idade, fui ao bar mais próximo e, em
uma hora, gastei metade de um mês de salário com doces e picolés. Eu tinha uma
fome insaciável de pão, de carne, mas também de doçura. Quando cheguei em casa,
levei uma surra: meu salário não era meu, era da família. Só a fome era minha.
Sinto cheiro de churrasco até onde não há
churrasco algum. Em 1976, senti esse cheiro numa rua histórica em Cambridge, na
Inglaterra, onde eu era pesquisador visitante. A fome grudara na minha memória
e na minha alma.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia A Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).
5 comentários:
Quem pensa q a fome de ONTEM pode ser saciada com programas de alimentação de hoje? Quem?
Penso q a fome MUITO aumentou com bolsonaro.
E penso q Lula é o melhor pra amenizar a fome futura.
Fora bozo
Lula no 1o turno
Quem pensa que os CENTENAS DE MILHARES DE MORTOS que Bolsonaro deixou morrer ao sabotar seu ministério da Saúde vão se recuperar? Menosprezou a PANDEMIA tratando-a como GRIPEZINHA ou RESFRIADINHO, combateu o uso das máscaras, não respondeu ofertas de vacinas, atrasou a compra das vacinas e a aplicação delas, cancelou o contrato de compra da "vacina chinesa do Doria", recomendava medicamentos ineficazes para tratar a Covid. CANALHA GENOCIDA!
Isso vale o título de um livro: "O Migalhista"...
Lembrei de um carrinho que vendia coxinha,namorava aquelas coxinhas com um apetite de leão,nunca tinha grana.
Comovente relato. De uma maneira duz com todas as letras que fone nesse país não é nenhuma novidade, para aqueles que vendem que isso seja novo, Josué de Castro fez história denunciando isso, mas somos assaltados com a certeza que o país, uma das maiores lavouras do mundo, não deu conta em resolver. A fome foi é ainda continua sendo uma arma política!
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