sábado, 5 de novembro de 2022

Eduardo Affonso - A metáfora x o metaverso

O Globo

Segundo uma lógica peculiar, avatares amarelos e embandeirados estão lutando por democracia enquanto clamam por um golpe

Receio que os próximos quatro anos não sejam, no Brasil, de embate entre progressistas e conservadores, mas entre os que optaram por viver na metáfora e os que embarcaram, de mala e cuia, rumo ao metaverso.

Metáfora — aprendemos no ensino fundamental — é algo dito em sentido figurado. Não para levar ao pé da letra. Mais ou menos como os votos na cerimônia de casamento e as “imagens meramente ilustrativas” das embalagens e cardápios.

 “Vai ter picanha e cerveja”, “Vai todo mundo namorar” e “Pobre vai voltar a andar de avião” já se tornaram — passadas as eleições — promessas metafóricas. E metáfora, conforme ensinou Gilberto Gil, é “fazer com que na lata venha a caber o incabível”.

Na lata do orçamento não cabem picanha na mesa do pobre e cerveja no seu freezer, nem remanejamento das filas de rodoviária para o check-in dos aeroportos. Namoro para todo mundo é bem mais factível, ainda que metade da população tenha deixado de ser elegível para o posto de parceiro/a/e. Talvez a responsabilidade fiscal e o fim do orçamento secreto também sejam metáforas — logo saberemos.

Os retirantes para o metaverso enfrentarão a dificuldade adicional de ter de entender onde se meteram. Este, mal sabem, é um mundo virtual, que tenta replicar a realidade — mas está longe de ser real.

Nesse “Second Life” tabajara, o comunismo foi ressuscitado como arqui-inimigo. Logo ele, que só sobrevive, com modelo híbrido, na China e no Vietnã, e se mantém, com ajuda de aparelhos, no Laos, na Coreia do Norte e em Cuba.

Segundo sua lógica peculiar, os avatares amarelos e embandeirados estão lutando por democracia enquanto clamam por um golpe contra o Estado Democrático. Cantam o hino nacional como se fosse uma canção do Carlinhos Brown, sem dar bola para a letra. Se iluminam com “o sol da liberdade, em raios fúlgidos“, ao mesmo tempo que “autorizam” uma ditadura. Exaltam “o penhor dessa igualdade”, querendo impor sua vontade à maioria. Falam “de amor e de esperança” e dá-lhe violência para bloquear estradas e tentar disseminar o caos. Passam por “nossos bosques têm mais vida” como se nada tivessem a ver com desmatamento, garimpo ilegal, desmonte do Inpe. Não se vexam de entoar “se ergues da justiça a clava forte” enquanto erguem a clava forte contra a Justiça. E pulam a “paz no futuro” para focar numa suposta “glória no passado”.

Tanto metafóricos quanto metavérsicos habitam sua própria dimensão paralela. Bolsonaristas tratam como fraude as eleições que perderam. E era querer demais que seu luto acabasse antes da missa de sétimo dia — os petistas, seis anos depois, ainda chamam de golpe o impeachment de 2016 (seria interessante saber se o ministro Lewandowski, que presidiu o processo, entende como metáfora cada vez que esse disparate chega a seus ouvidos).

Depois das patriotadas desta semana, talvez Bolsonaro esteja acabado. Mas, se Lula tiver sido metafórico em suas promessas de conciliação nacional, o bolsonarismo poderá voltar em 2026. E com o destemor e a insensatez de um militonto grudado no para-brisa de um caminhão.

3 comentários:

Aylê-Salassié disse...

Belo artigo, Affonso. Acho que desvendou boa parte das confusões mentais instituídas nessa campanha, e tendendo para a canonificação. Confesso, entretanto, que não concordo com os deslizamentos semânticos da linguagem, semeados com sentidos ambíguos, quando dirigidos à coletividade. A metaforização é um apenas recurso de linguagem, e não uma instrumento de distorção da realidade, que se acomoda em discursos aparentemente legitimadores. É uma retórica vazia. É, no mínimo, ante pedagógico, mas acredito mesmo que seja muito mais que isso, embora as partes não explicitem os conteúdos e as intenções contidas. Falta algo, como ética, dos protagonistas. O metaverso também não se presta a isso. Mas, gostei muito da abordagem. Acho que precisamos mesmo buscar vias mais próximas do que vem por aí. Shopenhauer dizia: o importante não é descobrir algo , mas descobrir algo novo naquilo que todos já conhecem. Abraços, e vá em frente.

ADEMAR AMANCIO disse...

Gostei do artigo,e do comentário também.

Anônimo disse...

Achei o texto criativo e muito bem escrito. Mas desconfio que o principal objetivo seja rejeitar tanto as "metáforas petistas" quanto o "metaverso bolsonarista"... Se foi isto, temos um belo texto a serviço duma lastimável intenção ou conclusão!