Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Cinco anos depois do assassinato da
vereadora e de seu motorista, caso ganha o reforço do delegado que “investigou
a investigação” do crime e prendeu o “faraó dos bitcoins”
Quando o procurador-geral de Justiça do
Rio, Luciano Mattos, entrou no gabinete do ministro da Justiça na manhã do dia
15 de fevereiro, ficou patente o desgaste que enfrentara, um mês antes, na sua
recondução ao cargo. Ele pediu a Flávio Dino que não federalizasse a
investigação da morte da vereadora Marielle Franco e do seu motorista, Anderson
Gomes. Comprometeu-se a colocar oito procuradores para acelerar a elucidação do
caso, que completa cinco anos em 14 de março.
Seus temores tinham fundamento. Um mês antes, 29 promotores do Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado (Gaeco) haviam pedido exoneração do cargo em protesto contra a recondução de Mattos. Apresentavam como justificativa para sua decisão o compromisso ignorado pelo procurador-geral em respeitar o resultado da lista tríplice que o havia colocado em segundo lugar na disputa, com 48 votos a menos do que Leila Machado, procuradora que recebeu o apoio de 485 colegas.
Ao longo de sua gestão, os dois casos de
maior repercussão da procuradoria, o assassinato de Marielle e Anderson e as
denúncias contra o gabinete do senador Flavio Bolsonaro, estancaram. Foi na
gestão anterior, de Eduardo Gussem, que o policial militar reformado Ronnie
Lessa e o ex-PM Elcio Vieira foram presos como executores do crime, e que o
primogênito do ex-presidente foi denunciado pela prática de “rachadinha” na
Assembleia Legislativa do Rio. Uma semana depois da visita de Mattos a Dino,
Gussem apareceu como um daqueles que tiveram seu sigilo fiscal devassado pela
Receita Federal na gestão Jair Bolsonaro.
Quando Mattos deixou seu gabinete, o
ministro chamou o diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Rodrigues, e o
superintendente da PF, Leandro Almada. Delegado da PF desde 2008 e empossado na
superintendência do Rio na semana anterior, Almada já havia feito a
“investigação da investigação” do caso Marielle em 2019, tendo concluído, em
relatório de 592 páginas, que PMs e advogados plantaram uma testemunha alheia
ao caso para obstruir o trabalho da Justiça junto a um delegado de sua própria
corporação. E argumentou com Rodrigues e Dino que a PF precisava ter seu
próprio inquérito.
A lei 10.446, de 2002, autoriza a atuação
da PF em infrações penais de repercussão nacional. Foi aprovada dois anos antes
da proposta de emenda constitucional que avalizou a federalização de
investigações quando aquela conduzida por agentes locais se mostrar inócua. A
opção foi pela atuação complementar da PF por 90 dias. Se as instâncias locais
não atuarem nesse prazo, diz Dino, o caso será federalizado.
Alvo, desde a transição, das investidas do
PT pela criação de uma pasta de segurança pública, Dino tem, na elucidação
deste caso, uma oportunidade de blindar seu ministério do fogo amigo. A
ofensiva só cresceu depois de 8 de janeiro, quando os petistas o acusam de ter
confiado demais no governador afastado do Distrito Federal, Ibaneis Rocha.
O caso Marielle, como mostraram Chico
Otávio e Vera Araújo, jornalistas de “O Globo” que acompanham a investigação
desde o início e escreveram “Mataram Marielle” (Intrínseca, 2020), encobre o
entrelaçamento das polícias com o crime organizado.
Dino vai lançar um programa de ocupação de
territórios violentos na periferia das grandes cidades, uma espécie de Unidade
de Polícia Pacificadora (UPP) aliada a iniciativas de cultura e educação. É um
híbrido da experiência de policiamento comunitário no Rio com os Cieps
brizolistas. Há programas em Pernambuco e no Pará pioneiros neste cruzamento.
Pretende-se financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento para
reproduzi-lo em escala nacional.
Por mais que esta abordagem ofereça uma
alternativa ao aliciamento da juventude periférica pelo crime, não há como
endereçar os problemas da segurança pública sem desbaratar as estruturas
criminosas incrustradas nas polícias de todo o país. Por isso o caso Marielle é
tão central para a pasta da Justiça.
Depois de acompanhar todas as crises que
envolveram o caso desde a publicação de seu livro, no final de 2020, Chico
Otávio pondera o otimismo. Diz que não está claro, por exemplo, se o Ministério
Público do Rio vai compartilhar provas. “Se não o fizer, a PF não vai conseguir
chegar a lugar algum”, diz.
O autor de “Mataram Marielle” foi o
primeiro a noticiar o afastamento das duas dedicadas promotoras do Ministério
Público do Rio, Letícia Petiz e Simone Sibilio, em 2021, por terem sido
alijadas da delação de Julia Lotufo, mulher do capitão do Batalhão de Operações
Especiais da PM do Rio Adriano da Nóbrega, expoente do crime organizado do Rio
morto em 2020 num sítio em que se escondia na Bahia.
A outra dúvida que surge é sobre o risco de
interferência dos tribunais superiores na apuração. As tentativas de entrada da
Polícia Federal no caso já foram rechaçadas pelo Superior Tribunal de Justiça.
Num voto acompanhado pelos oito ministros da Terceira Seção do STJ, a relatora
Laurita Vaz atestou que “não há sombra de descaso, desinteresse, desídia ou
falta de condições pessoais ou materiais das instituições estaduais
encarregadas de investigar, processar e punir os eventuais responsáveis pela
grave violação a direitos humanos”.
Se a decisão do STJ chegou a ser aplaudida,
ao longo do mandato Jair Bolsonaro, em virtude das associações da família do ex-presidente
com personagens envolvidos, como Adriano da Nóbrega, as mesmas suspeitas não
parecem atingir a federalização hoje.
Ao longo dos cinco anos desde a morte de
Marielle, nenhuma das pistas de envolvimento da família Bolsonaro com o caso se
mostraram conclusivas. A começar pela mais estridente delas, o depoimento do
porteiro do condomínio Vivendas da Barra, onde Ronnie Lessa era vizinho do
ex-presidente. Ele chegou a atestar a autorização de “seu Jair” para a entrada
de Elcio no dia do assassinato, mas depois que Bolsonaro provou estar em
Brasília naquele dia, mudou sua versão. O Ministério Público do Rio confirmaria
que a voz no interfone era do próprio Lessa.
A maior dificuldade para o avanço da
investigação é mesmo a autoproteção das estruturas das polícias, do Ministério
Público e do judiciário no Rio que mantêm vínculos com as milícias e com o
crime organizado. Sobrevivem a sucessivos governos de plantão. Expoente desta
rede, o ex-secretário de Polícia Civil do Rio Allan Turnowski chegou a ser preso
por suspeita de organização criminosa e envolvimento com o jogo do bicho em
setembro do ano passado, mas teve sua prisão revogada pelo ministro do Supremo
Tribunal Federal Kassio Nunes Marques um mês depois.
Ao se declarar favorável à entrada da Polícia
Federal no caso, o governador do Rio, Claudio Castro, que mantém uma boa
relação com o ministro Flavio Dino e foi colega de Marielle na Câmara de
Vereadores do Rio, sugere que a caixa-preta do crime organizado e das milícias
no Estado ultrapassa os poderes do Palácio da Guanabara.
Os conflitos entre o ex-governador Wilson
Witzel, um ex-bolsonarista que rompeu com o ex-presidente no início de sua
gestão e acabou cassado pela Alerj, contribuíram para tumultuar a atuação das
polícias e do MP com o plantio de pistas falsas na investigação. Witzel tentou
uma reunião no Palácio do Planalto em fevereiro, e a Secretaria de Comunicação
Social da Presidência informou que ele sequer foi recebido.
Se o governo federal enxotou Witzel,
acolheu, no Ministério do Turismo, uma parlamentar do União Brasil do Rio,
Daniela do Waguinho, cuja base eleitoral foi construída com apoio das milícias.
Apesar da conjuntura política mais
favorável à investigação, seu principal desafio está na sofisticação com a qual
o assassinato foi tramado, graças à inserção dos executores no sistema
policial. Como foi “adido” na Polícia Civil, condição em que o PM é cedido,
Ronnie Lessa conheceu por dentro as artimanhas do crime e a evolução da
investigação policial para desvendá-los, como a operação para adulterar o carro
utilizado, o uso de munição originária de um lote disseminado pelas polícias no
Brasil inteiro para a Olimpíada e a escolha de um trajeto com câmeras de vídeo
desligadas.
Foi o rastreamento do histórico de buscas
sobre a agenda de Marielle e o acesso ao Google Maps de Lessa sobre a vereadora
e seus familiares, dizem Chico Otávio e Vera Araújo, que foi determinante para
sua identificação como executores do assassinato.
As apostas de que, além da autoria do
assassinato pelos ex-PMs Ronnie Lessa e Élcio Queiroz, a nova investida resulte
na elucidação sobre os mandantes decorrem não apenas da nomeação de Almada para
a superintendência da PF no Rio, como do Setor de Inteligência Policial que
ficará encarregado da investigação. Quem conduz o setor é o delegado Guilhermo
de Paula Machado Catramby.
Catramby liderou a Operação Kryptos, da
Polícia Federal, que prendeu Glaidson Acácio dos Santos, o “faraó dos
bitcoins”. Ex-garçom e ex-pastor da Igreja Universal, Glaidson movimentou, a
partir da Região dos Lagos, no Rio, R$ 38 bilhões e lesou cerca de 300 mil
pessoas. Preso em agosto de 2021, Glaidson ficou em Bangu I, na zona oeste do
Rio, até janeiro deste ano, tendo sido transferido para o presídio federal em
Catanduvas, no Paraná.
A expectativa é de que se esta equipe, a
partir de uma investigação do Ministério Público do Rio e cruzamento de
informações do Ministério Público Federal, da Receita, da Procuradoria da
Fazenda Nacional e do Conselho de Controle de Atividades Financeiras, foi capaz
de desbaratar um esquema de pirâmide financeira fraudulenta com criptomoedas,
cujo comando tinha proteção de PMs, também poderá reconstituir os caminhos que
levarão aos mandantes do assassinato de Marielle e Anderson.
Maria Cristina Fernandes,
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Maria Cristina Fernandes.
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