sábado, 4 de março de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Sob Lula, Codevasf ainda é paraíso do orçamento secreto

O Globo

Seria razoável esperar que estatal se aprumasse com mudança de governo, mas não há perspectiva de mudança

Sai governo, entra governo, e nada muda na Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf). Ela tem a capacidade de atravessar administrações de espectros políticos antagônicos permanecendo intocável. Paraíso das verbas do orçamento secreto no governo Jair Bolsonaro e conhecido feudo do Centrão, a Codevasf continua, na gestão Luiz Inácio Lula da Silva, a ser abrigo seguro para apaniguados e parentes de políticos influentes.

Presidida pelo engenheiro Marcelo Andrade Moreira Pinto, apadrinhado pelo líder do União na Câmara, Elmar Nascimento (BA), a Codevasf funciona hoje como uma empresa familiar. No comando da superintendência em Alagoas está João José Pereira Filho, primo do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). A família Codevasf inclui ainda a assessora da presidência Juliana e Silva Nogueira Lima, irmã do senador Ciro Nogueira (PP-PI); o chefe da ouvidoria Leonardo Férrer de Almeida, filho do ex-senador Elmano Férrer (PP-PI); e a assessora Luana Medeiros Motta, mulher do deputado Hugo Motta (Republicanos-PB).

No caso de Pereira, também conhecido por Joãozinho, o parentesco com Lira não é a questão mais relevante. Ele foi condenado duas vezes em primeira instância por mau uso de recursos públicos destinados à Educação e à Saúde quando prefeito do município de Teotônio Vilela (AL), e seus bens foram bloqueados pela Justiça. Se confirmadas as sentenças, poderá ficar impedido de assumir cargos públicos. Noutra ação, foi denunciado pelo Ministério Público Federal sob acusação de superfaturar a compra de ambulâncias (foi absolvido nesse caso em duas instâncias, mas as decisões foram contestadas pelo ministro Benedito Gonçalves, do Superior Tribunal de Justiça).

A Codevasf foi criada em 1974 para apoiar a irrigação no Vale do São Francisco, mas sua área de atuação foi ampliada repetidas vezes, indo hoje do Amapá a Minas Gerais. Responsável por realizar obras, fornecer tratores e caixas-d’água em regiões assoladas pela seca, tornou-se alvo de políticos ávidos por seus recursos fartos e pelo potencial eleitoral que propicia. Em 2021, o valor destinado à Codevasf via emendas do relator chegou a R$ 1,3 bilhão, ou 40% de sua verba. No ano passado, só para Alagoas a empresa recebeu R$ 45 milhões em emendas do relator, ou 20% de tudo o que o orçamento secreto destinou à Codevasf. Desse total, R$ 10 milhões foram alocados para a obra de uma adutora em Teotônio Vilela, onde o prefeito é Peu Pereira (PP), outro primo de Joãozinho.

Não é difícil imaginar as consequências da liberação dessa dinheirama sem controle. Tribunal de Contas da União (TCU) e Polícia Federal (PF) têm apontado sucessivas irregularidades em contratos da Codevasf. Em outubro do ano passado, a Justiça determinou o afastamento de um gerente da superintendência do Maranhão, acusado de receber propina de empresas investigadas por desvios em licitações. Sem falar na qualidade das obras, feitas por empreiteiras escolhidas sabe-se lá como.

Seria razoável esperar que, com a mudança de governo, a Codevasf se aprumasse. Passados dois meses desde que Lula tomou posse, ela continua a ser porto seguro para o fisiologismo, o clientelismo, o nepotismo e outras práticas nefastas que degradam a administração pública. Não há, tristemente, perspectiva de que essa situação mudará.

IBGE acertou ao encerrar a coleta de informações do Censo 2022

O Globo

Mesmo tendo recenseado só 91% da população, é viável preencher lacunas. Prorrogar trabalho nada acrescentaria

O IBGE fez bem em encerrar a coleta de dados do Censo 2022, ainda que o percentual de brasileiros recenseados tenha sido de apenas 91%, ou 189,4 milhões de habitantes, quando na pesquisa de 2010 chegara a 96%. Prorrogar o Censo indefinidamente acrescentaria pouco ao trabalho já realizado e atrasaria ainda mais a entrega de informações essenciais para a sociedade, como os números que servem de base para a distribuição do Fundo de Participação dos Municípios.

Desde o início, o Censo enfrentou obstáculos. Depois de adiado pela pandemia, foi postergado por falta de orçamento. A coleta de dados só começou em agosto do ano passado. Deveria ter terminado em outubro, mas a conclusão foi sucessivamente prorrogada. O Censo 2022 só acabou no ano seguinte, um fato inédito.

Inúmeros motivos contribuíram para o atraso. Um dos principais foi a escassez de recenseadores. Em alguns momentos, havia apenas metade do necessário. Funcionários diziam que a remuneração não era atraente, e o pagamento atrasava. Ainda que os problemas tenham sido sanados, afetaram o ritmo da pesquisa. Outro obstáculo foi a dificuldade de acesso aos domicílios. Em janeiro, a média de recusa era de 2,82%. Não parece muito, mas esconde disparidades. Em São Paulo, estado no topo do ranking das portas fechadas, era de 5,42%. O problema atingia indistintamente comunidades pobres, onde barricadas impediam a visita, e condomínios de luxo.

A partir de agora, na fase de apuração, técnicos do IBGE se debruçarão sobre os dados coletados e analisarão as lacunas. Em casos específicos, não está descartado retorno pontual a domicílios. Haverá ainda uma ação especial na reserva ianomâmi, onde apenas 50% foram entrevistados. O alvo serão os moradores das áreas mais remotas.

Apesar de todas as dificuldades, ainda é viável, com as técnicas disponíveis, chegar a um número representativo da população brasileira, diz o demógrafo José Eustáquio Diniz Alves, pesquisador aposentado do IBGE. “Esse Censo nasceu com muitos problemas, mas a grande maioria da população já foi recenseada”, afirma. “Se não houver distorções no perfil sociodemográfico das pessoas não recenseadas, é possível imputar os dados faltantes de maneira satisfatória.” Prorrogar ainda mais não resolveria. Em janeiro e fevereiro, poucos foram recenseados. E, quanto mais tempo leva, pior a qualidade dos dados. As eventuais falhas na pesquisa podem, segundo a ex-presidente do IBGE Wasmália Bivar, ser corrigidas. “É preciso colocar o corpo técnico do IBGE em cima desses resultados”, diz ela. “O que nos levou a esses problemas foi justamente não ouvir o corpo técnico.”

O IBGE promete para abril os primeiros resultados. Por mais que a pesquisa tenha enfrentado problemas, será de enorme valia para formular políticas públicas e para que o Brasil se conheça melhor. A fotografia atual, de 2010, está amarelada demais.

Bolsa Família de novo

Folha de S. Paulo

Programa restaura cadastro único e fiscalização, mas ainda pode ser aperfeiçoado

A ideia do Bolsa Família teve origem modesta e fragmentada, ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Depois, o programa foi ampliado e aperfeiçoado nos dois primeiros mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Os benefícios foram unificados. Desenvolveu-se um sistema de cadastro único de identificação dos mais pobres, de acompanhamento da saúde e da educação das crianças, de integração com serviços sociais e de fiscalização também por meio de conselhos locais.

Era uma ação pública civilizatória, tratada quase como política de Estado, que avançava com debates e melhorias institucionais.

Em 2021, sob o governo de Jair Bolsonaro (PL), o Bolsa Família foi renomeado como Auxílio Brasil. No final do ano passado, o valor dos benefícios e o número de atendidos foram súbita e substancialmente elevados, mas de modo improvisado para atender objetivos eleitoreiros do então presidente.

O programa tornou-se uma variante do auxílio emergencial da pandemia: um pagador de benefícios sem muito critério, foco, fiscalização e exigências para as famílias.

Em seu terceiro governo, Lula reinstitui o Bolsa Família e restaura suas diretrizes fundamentais. As famílias terão de vacinar seus filhos, levar os menores de 7 anos para o acompanhamento de saúde, demonstrar que crianças e jovens frequentam a escola e que gestantes fazem o exame pré-natal.

O Cadastro Único também volta a ser utilizado para integrar os serviços de assistência social. Famílias que vierem a contar com renda superior ao teto do programa ainda receberão benefícios por dois anos, a fim de facilitar a transição para uma vida menos dependente.

A medida provisória que recriou o programa ainda pode vir a ser modificada pelo Congresso. Contudo, a propaganda eleitoreira a respeito do valor do benefício criou dificuldades políticas para outros melhoramentos.

Por exemplo, os recursos poderiam ser mais bem geridos, com valores diversos a depender das necessidades das famílias e da variação do custo de vida regional.

Haveria dinheiro para distribuição mais justa e com maior impacto social. No pico de sua despesa, o antigo Bolsa Família equivalia a 0,4% do PIB. Nos próximos 12 meses, ao menos, será 1,6%. O valor do benefício para cerca de 21 milhões de famílias deve superar R$ 700 mensais —mais da metade do salário mínimo.

Apesar de empecilhos políticos, há possibilidade de aperfeiçoamentos pontuais imediatos e de prosseguimento dos objetivos de longo prazo do programa. Isto é, ser um sistema de renda mínima e de atendimento das necessidades das pessoas mais vulneráveis do país.

Sem causa

Folha de S. Paulo

Com ação criminosa, MST interessado em cargos fornece discurso a bolsonaristas

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra já era um tanto farsesco na década retrasada, quando empregava métodos violentos em nome de uma causa duvidosa sob complacência camarada de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Já se questionavam, na época, a eficácia e os limites da reforma agrária como política social, dados os custos elevados, a urbanização irreversível do país e a produtividade da agropecuária mecanizada.

Mesmo com o ritmo inaudito das desapropriações, o MST mantinha o discurso radical e prosseguia com suas invasões de propriedades a qualquer pretexto, enquanto obtinha cargos e verbas públicas.

Mais recentemente, os sem-terra ficaram em relativa calmaria sob Jair Bolsonaro (PL) —que se gabava de ter posto fim ao movimento com a entrega de centenas de milhares de títulos de posse a assentados em governos anteriores.

Eis que agora, no retorno de Lula ao poder, o MST volta a ter destaque no noticiário com a invasão de três fazendas de cultivo de eucaliptos da Suzano Celulose, no extremo sul da Bahia, mobilizando cerca de 1.500 integrantes.

Trata-se de terras produtivas, o que contraria a tradicional propaganda a respeito das ações do movimento. Este apresentou a versão oficial de que o objetivo era pressionar a empresa a cumprir um acordo de 2010 envolvendo a cessão de terras para 600 famílias.

No próprio site do MST na internet, sugerem-se motivações bem menos revolucionárias. "O MST acionou o alerta amarelo diante da demora do governo federal em nomear a presidência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra)", relatou-se ali na segunda-feira (27), dia da invasão das fazendas na Bahia.

Na mesma data, o governo federal efetivou o servidor de carreira César Aldrighi, até então interino, no comando do órgão. A nomeação estava atrasada em razão de disputas políticas pelo posto.

A reforma agrária há muito perdeu relevância entre as principais bandeiras do PT —já sob Dilma Rousseff, que não era dada a economizar dinheiro, o ritmo de incorporações de terras para o programa desabara. Não há expectativa de retomada vigorosa agora.

Já o MST, mesmo amansado, ainda se presta ao papel de espantalho para os setores antipetistas da sociedade, notadamente no agronegócio. Com seu ato criminoso desta semana, forneceu um discurso fácil aos seguidores de Bolsonaro.

Não há crescimento econômico no grito

O Estado de S. Paulo.

Após crescer 2,9% em 2022, PIB deve ser pífio neste ano, o que explica a aflição de Lula, mas o governo faria bem se esperneasse menos e se dedicasse mais a sinalizar responsabilidade

A economia avançou 2,9% no ano passado, segundo o IBGE. É um resultado positivo, considerando o histórico de baixo crescimento do País. Mas é, também, um retrato de um passado recente marcado por muitos estímulos fiscais para aquecer a demanda, bem como do comportamento errático que o Produto Interno Bruto (PIB) tem apresentado nos últimos anos.

Em 2022, a artilharia eleitoral contou com o reajuste do piso do Auxílio Brasil, regras mais frouxas para empréstimos consignados e novas modalidades de saque do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). Não por acaso, o destaque da divulgação foi o consumo das famílias, que aumentou 4,3% e apresentou o melhor resultado desde 2011.

Como tradicionalmente acontece, no entanto, esses estímulos não foram capazes de produzir os mesmos efeitos ao longo do ano. No quarto trimestre, o PIB teve uma queda de 0,2% em relação ao trimestre anterior. Impulsionado pela redução das restrições sanitárias associadas à covid-19, o setor de serviços cresceu 4,2% em 2022, mas perdeu fôlego e teve alta de apenas 0,2% nos três últimos meses do ano.

Do lado da oferta, a agropecuária desacelerou na passagem do terceiro para o quarto trimestre, enquanto a indústria teve queda. Do lado da demanda, somente as exportações tiveram alta expressiva; o consumo das famílias e o consumo do governo desaceleraram, enquanto investimentos e importações passaram para o terreno negativo.

Os dados não apenas não deixam margem para ilusões, como reforçam as projeções sobre a fraqueza do desempenho da economia no curto prazo. No boletim Focus, a previsão é de um crescimento de apenas 0,84% neste ano. Ciente deste cenário adverso, o governo unificou o discurso para pressionar o Banco Central (BC) a baixar os juros.

Em nota, a Secretaria de Política Econômica (SPE) do Ministério da Fazenda destacou que o resultado do PIB do quarto trimestre foi o segundo pior entre os países do G-20. “A desaceleração acentuada do ritmo de crescimento em 2022, com retração já observada no último trimestre, repercute, sobretudo, a reduzida liquidez no ambiente externo e o ciclo contracionista da política monetária. O aumento dos juros somado à inadimplência crescente dificultou a tomada de crédito e os investimentos produtivos, levando à retração.”

Com o inimigo identificado, houve até trégua – temporária – entre o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e a presidente do PT, Gleisi Hoffmann. Líder de uma ala do partido que equivocadamente vê o compromisso fiscal assumido por Haddad como um obstáculo ao crescimento, a deputada não perde a oportunidade de fustigar o ministro em público, como se viu no episódio da reoneração da gasolina. Dessa vez, no entanto, ela atribuiu a desaceleração da economia às “seguidas altas dos juros pelo Banco Central”.

O presidente Lula, por sua vez, voltou a criticar abertamente o presidente do BC, Roberto Campos Neto. Depois de dizer que o País não cresceu “nada” em 2022, afirmou à BandNews que Campos Neto “não foi eleito para nada” e afirmou que o País “não pode ser refém de um único homem”. Até a ministra do Planejamento, Simone Tebet, teve de entrar na dança. “Não queremos nenhuma generosidade, mas um gesto positivo a favor do Brasil na próxima reunião do Comitê de Política Monetária”, disse ela.

Nesse jogo de retórica política, o governo continua a ignorar o quanto pode contribuir para reduzir o nível do aperto monetário. Para isso, basta uma política fiscal mais austera e uma âncora crível para substituir o teto de gastos. Porém, além de criar ruídos na área econômica, o governo prefere apostar em medidas heterodoxas como o Imposto de Exportação – algo que nem mesmo a ex-presidente Dilma Rousseff ousou aplicar.

Se quer colher juros mais baixos, Lula precisa parar de plantar incertezas que só retroalimentam as projeções de inflação e minam a economia. Do contrário, as projeções de crescimento pífio serão uma profecia autorrealizável.l

Novo Bolsa Família, velhos problemas

O Estado de S. Paulo.

O problema não é o Bolsa Família em si, mas sua perpetuação. Um estadista estaria ocupado em criar as condições para que cada vez menos pessoas dependam do programa para viver

O presidente Lula da Silva assinou na quinta-feira passada a medida provisória (MP) que recriou o Bolsa Família, agora sob novos parâmetros. De acordo com o Ministério do Desenvolvimento Social, 20 milhões de famílias serão atendidas pelo programa remodelado, o que corresponde a cerca de 55 milhões de pessoas. Além do benefício mínimo, no valor de R$ 600, foram criados dois benefícios complementares, promessas de Lula durante a campanha eleitoral: um adicional de R$ 150 por criança de até 6 anos de idade na composição familiar; e o benefício “Renda e Cidadania”, de R$ 50, que será pago a cada membro da família com idade entre 7 e 18 anos incompletos e às gestantes.

A um só tempo, a recriação do Bolsa Família representa acertos do governo Lula e uma vergonha para a sociedade brasileira. Comecemos pelos pontos positivos.

Em primeiro lugar, o governo agiu bem ao retomar as contrapartidas sanitárias e educacionais que sempre estiveram atreladas à concessão dos benefícios. Para receber os recursos do novo Bolsa Família, os beneficiários voltarão a ter de provar que suas crianças estão matriculadas na escola e estão em dia com a vacinação contra doenças infectocontagiosas. As gestantes terão de realizar o acompanhamento pré-natal. Essas exigências haviam sido eliminadas por Jair Bolsonaro, quando da criação do Auxílio Brasil, porque o expresidente jamais esteve interessado em melhorar as condições de vida dos desvalidos, mas sim em criar um programa descarado de compra de votos.

O presidente Lula também acertou ao exigir do Ministério do Desenvolvimento Social o aprimoramento do Cadastro Único (CadÚnico), base de dados cuja acurácia é fundamental para o direcionamento dos recursos do Bolsa Família às pessoas certas. Durante a cerimônia de assinatura da MP, no Palácio do Planalto, Lula afirmou que “esse programa só dará certo se o Cadastro Único for eficaz e garantir que o benefício chegue a quem precisa”. Lula pediu a ajuda “de toda a sociedade” – especialmente da imprensa – para “fiscalizar” a concessão dos benefícios. A imprensa, até por dever de ofício, não se furtará a exercer seu papel, mas não custa lembrar que é do governo o dever de zelar pela higidez do CadÚnico.

Ao estabelecer novos parâmetros para pagamento dos benefícios e reforçar a necessidade de aprimorar o CadÚnico – segundo estimativas do próprio governo, há 1,5 milhão de beneficiários em situação irregular –, Lula tende a eliminar as distorções que, nos últimos quatro anos, tornaram o programa de transferência de renda um caos, um sorvedouro de recursos públicos mal direcionados. Decerto é possível fazer mais e melhor, quiçá gastando menos, apenas depurando o quadro de beneficiários do Bolsa Família, com mais foco e inteligência.

Dito isso, é uma vergonha para a sociedade brasileira o fato de que, passadas duas décadas desde a criação do Bolsa Família, ainda haja tantos milhões de cidadãos que dependem do benefício estatal para sobreviver. Não há evidência mais cabal do absoluto fracasso de sucessivos governos, de diferentes orientações político-ideológicas, em acabar com a miséria no País. Por óbvio, não se trata de supor, ingenuamente, que no espaço de 20 anos fossem superadas as causas que constituíram a desigualdade como um traço distintivo da formação nacional. O que espanta é o Bolsa Família ainda ter a dimensão e a importância que tem em 2023.

Este jornal não é contra programas de transferência de renda, menos ainda contra o Bolsa Família, política pública que se provou bem-sucedida por meio de evidências científicas e análises de especialistas insuspeitos. O Brasil é um país que ainda não pode prescindir de um bom programa de transferência de renda. Muitos cidadãos têm essa consciência e aceitam arcar com seus custos.

O problema, portanto, não é o Bolsa Família em si, mas sua perpetuação, até como ativo eleitoral. Um estadista estaria ocupado em criar as condições que permitam que cada vez mais brasileiros resgatem sua cidadania e cada vez menos dependam do Estado para viver.

Insegurança na Pinacoteca

O Estado de S. Paulo.

É uma vergonha que um dos museus mais sofisticados do País avise que ali não é seguro usar celular

A foto estampada ontem na primeira página do Estadão deveria envergonhar as autoridades da Segurança Pública paulista: ela mostra um aviso na entrada da Pinacoteca de São Paulo alertando os visitantes para não usarem celular por causa do risco de roubos nos arredores do prédio, perto da Estação da Luz, no centro da cidade.

Como bem sabem os paulistanos e turistas que frequentam o local, é mesmo uma aventura ir a um dos principais museus da capital paulista. Não só por conta de roubos de celular, mas pela falta de segurança na hora de estacionar o carro. Furtos de veículos também são um problema recorrente, e o aviso deixa claro que a Pinacoteca não tem parceria com estacionamentos nem com guardadores autônomos na região. O risco é todo do cidadão.

Ora, é inaceitável que o poder público não ofereça uma estrutura mínima para viabilizar, com segurança, o acesso à Pinacoteca. Isso vale também para a limpeza e a conservação de ruas e calçadas, um verdadeiro desastre numa área que concentra algumas das principais atrações culturais do País.

De fato, não é só a Pinacoteca que sofre as consequências do desleixo governamental. O Museu da Língua Portuguesa e a Sala São Paulo igualmente expõem seus visitantes aos mesmos dissabores − um completo desserviço à revitalização da região e à tentativa de atrair novos investimentos. É um contrassenso dispor de alguns dos melhores espaços culturais do Brasil e cuidar tão mal da segurança pública no seu entorno.

Não se ignora que roubos de celulares são um problema nas grandes cidades do País e do exterior, uma versão atualizada daquilo que batedores de carteira faziam − e ainda fazem. Na capital paulista, porém, esse tipo de crime se converteu em uma epidemia, com vítimas a todo momento e em todo lugar.

No caso da Pinacoteca, há uma ironia trágica por trás do alerta colocado na calçada: o museu é vinculado à Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo. Pertence, então, ao governo estadual, o mesmo que comanda a Polícia Militar e a Polícia Civil − e é responsável pela segurança pública. Deduz-se, portanto, que as autoridades sabem onde se concentra o problema, considerando que o aviso diz: “Atenção! Não use seu celular aqui. Perigo de furto”. Vale perguntar: cadê a polícia?

Por óbvio, o policiamento ostensivo faz-se necessário. Ainda que a mera presença de policiais, por si só, não resolva inteiramente o problema, já é fator inibidor da ação criminosa. Note-se que estamos falando aqui de algo elementar: o mesmo Estado que investe para dotar a cidade de museus de arte do porte da Pinacoteca deve garantir as condições mínimas de segurança para que a população e os turistas possam frequentálos. Isso envolve, entre outras ações, a desarticulação das quadrilhas que dão sustentação a esse tipo de crime − um esquema que vai muito além do ladrão que passa de bicicleta e apanha o celular de quem anda pela rua.

O que não pode é o governo estadual, ciente da violência na região, simplesmente demandar que a população mude hábitos e arque com as consequências. Garantir a segurança pública é dever do Estado.

Uma decisão sensata

Revista Veja

Com reoneração dos combustíveis, cravou-se a primeira vitória do governo em nome da responsabilidade fiscal e do equilíbrio nas contas públicas

Desde sua eleição, em outubro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem feito declarações temerárias sobre assuntos econômicos. Foi assim com a defesa dos aumentos dos gastos do governo sem apresentar contrapartida que garanta o equilíbrio fiscal, com os ataques ao mercado e mais recentemente contra a taxa de juros e a autonomia do Banco Central. Na última segunda, dia 27, o presidente tomou uma decisão que, se não dirimiu os equívocos anteriores, pelo menos sinalizou algum compromisso com a preservação das contas públicas. Ao reverter a desoneração dos combustíveis decretada por seu antecessor, Jair Bolsonaro, em uma medida eleitoreira tomada em junho do ano passado, ele fechou uma torneira que prometia sangrar os cofres públicos em cerca de 50 bilhões de reais apenas neste ano, isso em um momento em que o governo se esfalfa para manter o equilíbrio das contas.

Com a medida, Lula realizou um importante gesto. Pela primeira vez, o presidente empenhou apoio ao seu ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que desde dezembro defendia o fim da desoneração. Desde o princípio, Haddad vem se firmando como a voz da temperança e tem se esforçado para contrapor argumentos ajuizados às imprudências do chefe. Nessa defesa do bom senso e dos fundamentos econômicos, tem enfrentado a cantilena populista de outras lideranças petistas adeptas do discurso irresponsável pró-gastança, vocali­zado principalmente pela presidente do PT, Gleisi Hoffmann, e, de forma mais sutil, pelo presidente do BNDES, Aloizio Mercadante. Numa disputa que tinha o potencial de colocar sob risco a credibilidade econômica do governo, já no início do mandato, Haddad — ainda bem — saiu vencedor.

Em economias funcionais, evidentemente, o cenário ideal é aquele de impostos mínimos e redução tributária. No caso da volta dos tributos sobre a gasolina e o álcool há, no entanto, algumas nuances a ser levadas em conta. Em primeiro lugar, é importante destacar que os impostos já existiam e foram suspensos em meio ao frenesi perdulário da etapa final da administração Bolsonaro, com vistas a anabolizar sua popularidade e conquistar a reeleição. O prazo de vigência dos descontos ia até 31 de dezembro e foi estendido por dois meses — contra a vontade de Haddad e por pressão da ala política do PT. Em meio a uma cruzada pela redução do aquecimento global, os combustíveis fósseis estão na linha de tiro de entidades como o G20 e a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que defendem o fim de subsídios e o aumento dos impostos sobre esses produtos como forma de diminuir seu uso e ajudar a custear modelos de transição mais limpos. Com seu posicionamento nesta semana, o governo foi muito além de deixar a gasolina e o álcool mais caros. Analisada por um ângulo mais profundo, cravou-se aí a primeira vitória em nome da responsabilidade fiscal e do equilíbrio nas contas públicas.

Publicado em VEJA de 8 de março de 2023, edição nº 2831

 

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