segunda-feira, 22 de maio de 2023

Bruno Carazza* - Os caça-penduricalhos na elite estatal

Valor Econômico

Efeito cascata de benefícios faz teto virar piso para alguns servidores

Em 12 de janeiro de 2015, entraram em vigor as Leis nº 13.093 e 13.095, que instituíram a “gratificação por exercício cumulativo da jurisdição” para os magistrados da Justiça Federal e do Trabalho.

O benefício consiste no pagamento de um extra de até 1/3 do salário do juiz caso ele exerça alguma atividade além das suas competências normais. A remuneração básica de um juiz federal ou trabalhista atualmente está em R$ 33.924,93, R$ 35.710,46 ou R$ 37.589,96, a depender do nível da carreira.

Em 2020, o Conselho Nacional de Justiça, órgão criado para exercer o controle administrativo e financeiro do Judiciário, estendeu a gratificação a todos os juízes do país. A medida foi tomada numa canetada do ministro Dias Toffoli, sem respaldo legal, justificada pelo entendimento de que a Justiça brasileira é unitária e, assim, o benefício dado a um deve valer para todos.

Dois anos depois foi a vez do procurador-geral Augusto Aras reconhecer que todos os promotores e procuradores também fazem jus à gratificação, sob o argumento de que há uma simetria entre Judiciário e Ministério Público. O adiciona também foi instituído sem aprovação do Congresso, mediante mera “recomendação”.

Na semana passada, o mesmo Aras regulamentou a gratificação no âmbito do Ministério Público da União. Malandramente, ele transformou a gratificação numa licença de até 10 dias por mês e abriu a possibilidade para os procuradores “venderem” folga não usufruída. A manobra tem uma razão: convertida em “indenização”, não está sujeita ao teto salarial do funcionalismo e nem à cobrança de Imposto de Renda. Em tempo, o pagamento será retroativo 01/01/2023.

Graças a penduricalhos como esse, é difícil encontrar um juiz ou promotor, mesmo em início de carreira, que ganhe menos do que o soldo dos ministros do STF, hoje em R$ 41.650,92.

Em resposta a um tweet meu sobre esses absurdos, o pseudônimo Senhora Lu me alertou: “Informe-se bem sobre a remuneração de juiz federal. Depois me diga se há equivalência entre magistraturas estaduais, ministérios públicos estaduais e federais e magistratura federal. Isso sem contar advocacia pública.”

Senhora Lu tem razão. A fábrica de penduricalhos salariais em geral começa com a criatividade nos Tribunais e Procuradorias Gerais de Justiça nos Estados. Longe da cobertura da imprensa, desembargadores e procuradores se sentem à vontade para criar auxílios, adicionais, abonos e afins que, muitos anos depois, serão estendidos a toda a magistratura, promotores e procuradores do MP e, por tabela, Tribunais de Contas, por meio de decisões administrativas como as de Toffoli e Aras.

Mas, como Senhora Lu disse, esse não é um privilégio do Judiciário. Em 2016, o Congresso aprovou a Lei nº 13.327, que determinou que os honorários de sucumbência de ações vencidas pela União cabem aos advogados públicos pertencentes às carreiras da AGU e das Procuradorias Gerais da Fazenda Nacional, do Banco Central e das autarquias e fundações.

Num processo, honorários de sucumbência são valores devidos pela parte perdedora ao advogado do lado vencedor. Há décadas, é uma forma de remuneração da advocacia privada. Depois de muito lobby, os advocados públicos conseguiram a equiparação. Mas há uma “pequena” diferença: ao contrário de seus colegas do setor privado, membros das carreiras jurídicas do Executivo ganham R$ 22.905,79 em início de carreira e R$ 29.761,03 no final, mesmo se não redigirem uma petição sequer no mês.

Desde 2017, os honorários renderam R$ 9,7 bilhões. Eles deveriam ser usados para financiar políticas públicas, mas foram parar do bolso de advogados e procuradores federais. Sua associação defende que a benesse é “uma modalidade de remuneração por performance inspirada nas mais modernas formas do regime privado, privilegiando a qualificação profissional e o máximo empenho”. Todos os seus membros, porém, estão ganhando um extra de até R$ 12.000 por mês, independentemente da “performance” - e mesmo os aposentados são contemplados.

Essa distribuição indiscriminada de penduricalhos está deixando a elite do funcionalismo em pé de guerra. Auditores da Receita Federal pressionam o ministro da Fazenda pela regulamentação de um “bônus de eficiência e produtividade”. Apesar dos rendimentos que vão de R$ 22.921,71 a R$ 29.760,95, os fiscais recebem também um “plus” de R$ 3.000,00 por mês desde 2016. Segundo o pleito da categoria, o agrado poderá passar para R$ 10.000 mensais por auditor.

A possibilidade de concessão do benefício aos fiscais desperta o ciúme de outras carreiras igualmente poderosas. “Esse tratamento desigual criará distorções. Teremos diretores do BC ganhando menos que um auditor da Receita em início de carreira”, ressaltou Henrique Seganfredo, presidente da Associação Nacional dos Analistas do Banco Central do Brasil (ANBCB).

Unidos aos auditores do Tesouro Nacional e da CGU, os analistas do Bacen se mobilizam para (surpresa!) aprovar o seu próprio bônus.

Já faz tempo que o teto virou piso para a elite do funcionalismo público brasileiro.

*Bruno Carazza é mestre em economia e doutor em direito, é autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”. 

 

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