Eu & /Valor Econômico
Escolas do país têm adotado a criativa
orientação de visitar e conhecer o que os historiadores europeus chamam de
lugares da memória, marcos históricos e antropológicos da identidade do povo
Foi parar na polícia o questionamento de
uma visita pedagógica ao quilombo Cafundó, no dia 18 de agosto, de adolescentes
do 7º ano, acompanhados de professores, de uma escola pública de Salto de
Pirapora (SP).
A mãe de um aluno, que não participou da visita,
viu na internet fotos do lugar e inseriu na rede um protesto, definindo o
quilombo como verdadeira macumbaria. Certamente não é o caso de afirmar,
perguntando, como faz o pai da atual onda de intolerância social e cultural no
Brasil: “E daí?”.
Não é o caso, porque a ocorrência expressa a extrema gravidade de tudo que a ocorrência significa e acarreta como violação da liberdade pedagógica dos docentes em relação ao teor, aos temas e às técnicas de ensino que adotam, com base em programas oficiais.
Especialmente num país como o nosso, que
vem sendo afogado na ignorância crescente difundida e imposta pela intolerância
das minorias obscurantistas. Quanto mais ignorante for o povo em relação ao que
somos como sociedade da diversidade democrática, mais fácil será, como vimos no
período governamental terminado em 31 de dezembro, tutelar o país como
sociedade carneiril, condenada a bajular os donos do poder e a bater-lhes
continência.
Escolas do país têm adotado a criativa
orientação de visitar e conhecer o que os historiadores europeus chamam de
lugares da memória, marcos históricos e antropológicos da identidade do povo
para nos reconhecermos como membros e protagonistas responsáveis pela sociedade
em que vivemos.
O Colégio de Aplicação da Universidade de
São Paulo promove visitas educativas de seus alunos à aldeia guarani do Jaraguá
para que ali passem o dia, conheçam os costumes dos indígenas, seu modo de
viver, seus alimentos, suas ideias, sua cultura, sua língua. Um modo de
reconhecerem sua própria humanidade na humanidade do indígena que os acolhe e
lhes ensina o que sabem. O saber como um privilégio e uma revelação, um legado
às novas gerações.
A história dos pretos do Cafundó é
particularmente significativa. Foi uma descoberta dos anos 1970, quando um jornalista
a revelou. Tratava-se do pequeno remanescente de um dos últimos grupos de
escravos trazidos da África para o Brasil, clandestinamente, depois da lei de
1850 que, tardiamente, proibira o tráfico negreiro. O grupo ainda falava e fala
fragmentos de uma língua africana. A notícia atraiu a atenção do professor
Zeferino Vaz, professor, reitor e fundador da Unicamp - a Universidade Estadual
de Campinas.
Ele sugeriu a um dos professores de
antropologia da instituição, Peter Fry, especialista em nossas populações
originárias da África, que se associou a outro professor da escola, Carlos
Vogt, linguista e poeta. Ambos são autores de obras respeitadas e referenciais.
O estudo do grupo levou anos. A língua é a
quimbundo, do grupo linguístico Bantu, situado em largo território da região
subsaariana. Zumbi dos Palmares era originário de um desses grupos. Bantu quer
dizer gente, humano, portanto o oposto do personificado pelo ato da mulher que
fez a denúncia contra a escola. Gente que tem muito a ensinar aos que perfilham
concepções autoritárias e intolerantes.
O grupo original do Cafundó, em rigor, já
não pratica uma religiosidade própria e original. São majoritariamente
católicos e evangélicos e residualmente praticantes da umbanda em relação aos
quais é difícil falar em macumba ou macumbaria, uma inovação vocabular de quem
não só desconhece o assunto, mas é hostil a um grupo humano como aquele, não
porque o conheça, mas justamente porque o desconhece e não quer conhecê-lo.
Coisas de pessoas que querem o país inteiro só para elas, que querem vetar e
proibir a diversidade cultural da formação das novas gerações.
A umbanda nasceu no Brasil como resposta
adaptativa à repressão policial contra os cultos africanos, confinando em
práticas ocultas e mutiladas a devoção aos orixás, especialmente a referência a
Exu, que abre caminho e tem precedência nos ritos. Acompanhei na roça, em
região não muito distante do Cafundó, uma procissão de São Sebastião precedida
por São Benedito, para que não chovesse e não se perturbasse a festa do santo
branco. Era Exu disfarçado, o abridor de caminhos.
Segundo Peter Fry e Carlos Vogt, a língua
africana mutilada, que ainda se fala no Cafundó, a cupópia, do quimbundo
kupupia, falar, é uma língua usada para conversação exclusivamente entre os membros
da comunidade para conversa entre eles, o bate-papo deles.
A deplorável satanização do quilombo
Cafundó é na verdade expressão da mais deplorável ainda presunção de muitos
neste país de que têm o direito de intrometer-se na educação das novas gerações,
de meter o nariz na educação dos filhos dos outros.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre a incerteza do instante” (Editora Unesp, 2021).
Um comentário:
Magnífico! É impressionante a quantidade de preconceitos e mentiras contra a atuação de professores, em geral provenientes de bolsonaristas radicais ou violentos, que desrespeitam cotidianamente o trabalho profissional e dedicado de tantos professores, que apenas querem dar melhores perspectivas de futuro aos nossos estudantes. Ministros corruptos e criminosos como Abraham Weintraub e o pastor Milton Ribeiro, incompetentes ao extremo, degradaram como nunca a Educação pública no Brasil, prejudicando a ação dos professores e estimulando os preconceitos entre os familiares dos estudantes.
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