O Estado de S. Paulo
A turbulência mundial parece também se voltar
para a América do Sul; e o realismo mágico sul-americano parece ter se
expandido para o mundo
O Brasil voltou, diz o slogan internacional
do País, rompendo com a era de isolamento de Bolsonaro. O Brasil é de novo um
protagonista, afirmam os jornais. De fato, num mesmo período de tempo o País
ocupou a presidência do Conselho de Segurança (CS) da ONU, do G-20 e do
Mercosul. Antes mesmo de tomar posse, Lula foi ao Egito e afirmou, no discurso
em Sharm el-Sheik, que o País protegeria a Amazônia e se empenharia, em nível
global, no combate às mudanças climáticas. De uma só vez, o Brasil desfazia o
nó do isolamento e indicava que iria considerar seus recursos naturais com a
importância estratégica que mereciam.
Ocorre que o mundo ao qual o Brasil estava voltando vivia também uma guerra na Europa. As guerras no Iêmen ou em vários países africanos não aparecem na cena internacional. A Rússia invadira a Ucrânia e era preciso se posicionar.
Lula reagiu de acordo com os princípios da
política externa nacional: buscar soluções pacíficas e negociadas para os
conflitos. Mas seu desejo de conciliar acabou colidindo com o próprio discurso.
A Ucrânia torceu o nariz para a sua afirmação de que numa guerra a culpa era
dos dois. E os países ocidentais não receberam bem sua crítica sobre o envio de
armas para a Ucrânia. O pêndulo poderia ter se voltado para o país invadido.
Mas o Brasil acabou parecendo ser mais simpático a Putin.
Não sei explicar essa ligeira tendência.
Creio que a Rússia ainda é vista a partir da literatura da revolução e, mesmo,
de seu combate contra as tropas hitleristas na Segunda Guerra.
Quando fui a Rússia, na Copa de 2018,
pesquisei uma dúzia de livros sobre a saga da oposição e os meandros do governo
Putin. Constatei que quase todos eram desconhecidos no Brasil. A repressão a
manifestantes democráticos, o envenenamento de opositores, o flerte da Rússia
de Putin com a extrema direita, tudo isso passa muito rápido. Ainda agora, a
decisão do governo Putin de criminalizar o movimento LGBT e igualá-lo ao
extremismo não é vista como parte de um todo reacionário e coerente.
Putin é um criminoso procurado pelo Tribunal
Penal Internacional (TPI). A tendência do governo é de relativizar essa
acusação. Não se trata só de sermos signatários do tratado que criou o
tribunal. O problema é que, acossados pelos desmandos de Bolsonaro, o TPI foi
usado como defesa. Valeria para Bolsonaro e não vale para Putin.
O segundo grande momento do ano foi o
atentado terrorista do Hamas, matando e queimando crianças e idosos e
violentando mulheres. Lula afirmou que era um atentado terrorista. Mas o
governo não classifica o Hamas como terrorista porque a ONU não o faz. Na
presidência do CS da ONU, o Brasil realizou um grande trabalho pelo cessarfogo.
A moção que redigiu e encaminhou teve 12 votos a favor e só não vigorou por
causa do veto dos EUA. De qualquer maneira, abriu caminho para uma proposta
mais branda de Malta, que acabou sendo aceita. Da mesma forma, a diplomacia
brasileira conseguiu retirar com êxito quem estava em Israel, na Cisjordânia e
mesmo na Faixa de Gaza. Isso passa aos brasileiros a sensação de que não são
esquecidos quando colhidos por grandes problemas no exterior.
Lula tem criticado as ações de Israel, que,
no combate ao Hamas, está punindo toda a população de Gaza. A preocupação com
os civis em Gaza é internacional. O próprio papa usou a expressão terrorismo
para definir a matança generalizada. Países como a Irlanda também criticam a
maneira como Israel desenvolve a luta. Não apoiar incondicionalmente Netanyahu
não significa necessariamente voltar as costas para Israel, desde que se
mantenha a visão estratégica de dois Estados como saída para a crise. Um ou
outro adjetivo, uma ou outra frase não chegam a abalar relações entre países.
Se nos atemos exclusivamente às manifestações diplomáticas oficiais, o Brasil
consegue navegar bem nesta crise e deve retirar ainda mais 180 pessoas de Gaza.
Só que a turbulência parece se voltar também
para a América do Sul. Neste campo, o papel de mediador do Brasil é essencial.
A Venezuela quer tomar Essequibo da Guiana. É uma região de 159 mil km2 com 11
bilhões de barris de petróleo e muito minério. Americanos e chineses a
exploram. Mas tudo acontece perto da fronteira do Brasil e, caso a crise se
acentue, depois do plebiscito venezuelano, o País terá um importante papel.
Lula já indicou sua posição. Não parece apoiar nenhum tipo de conflito e
certamente será um mediador decisivo, caso aconteça algo.
Nunca se sabe se Maduro fez o plebiscito só
para se fortalecer, pois a oposição não poderia votar contra. Pode ser que o
use apenas como um trunfo nas eleições presidenciais. Difícil prever com
precisão os passos de Maduro. É um homem que recebe orientação de passarinhos,
assim como Milei recebe orientação de um cachorro.
O ano que começou reverberando o discurso de
Sharm elSheik termina com outro discurso, de Dubai. O Brasil já não promete só
mudar de rumo, mas se dispõe a liderar o mundo no campo ambiental, pelo
exemplo.
Dubai foi sede da COP mais ambígua da História. Seu presidente, o sultão Al Jaber, dirige a empresa petroleira dos Emirados e deu declarações duvidando da condenação científica dos combustíveis fósseis. E o Brasil, candidato a líder na transição energética mundial, aproveitou a oportunidade para aderir à Opep+. O realismo mágico sulamericano parece ter se expandido para o mundo.
3 comentários:
■■■Este artigo do Gabeira é mais um para boa reflexão por todos.
■■Ontem teve o artigo de Maria Cristina Fernandes, que se somava ao de Assis Moreira e ao de Armínio Fraga, estes abordando aspectos mais econômicos da inserção mundial do Brasil.
■■Este artigo de Fernando Gabeira é mais um artigo para principalmente os petistas e os que se dizem "de esquerda" no Brasil, mas flutuam em torno de Lula e do PT, refletirem sobre cada frase, cada palavra, cada letra.
■■■Sempre que o marqueting grita "O Brasil voltou", antes de concordar e repetir o grito é preciso verificar para onde foi esta volta e verificar com quem o "Brasil" tem andado e para fazer o quê?
Andar com Vladimir Putim é andar com um homofóbico e repressor, que acaba com a imprensa profissional e mata jornalistas e opositores.
E é bom verificar se o "Brasil" que está andando com Putin e com outros ditadores faz no Brasil Brasil a mesma coisa que ele faz na Rússia e procura uma forma de matar a imprensa profissional agredindo jornalistas, xingando e perseguindo, já que ainda não têm o poder suficiente para assassinar mesmo, como fazem os ditadores que eles apoiam.
Chamam Miriam Leitão, quando ela os contraria, de Mirian "Bacon"? Como tratam colunistas formidáveis como Merval Pereira, Malu Gaspar e Demétrio Magnólia? Debocham destes colunistas?
Deveriam é debochar dos erros técnicos e morais, inclusive de roubo de milhões, roubo de relógios, debochar de aquisição de tríplex e de sítios de seus Mitos, debochar de roubarem programas sociais de adversários, deveriam debochar de darem escolas para os brasileiros que não fazem nenhuma diferença...
Andam por aí manobrando para que terroristas não sejam combatidos e, pelo contrário, invertem e chamam de terroristas os que os combatem? Fazem estas afrontas à democracia junto com Xi Jiping e com Vladimir Putin?
Eu poderia continuar, mas as pessoas são capazes elas mesmas de irem listando o que fazem acriticamente, agredindo quem com erros e acertos faz um mundo melhor e mais democrático que estes a quem o "Brasil" volta, voltando aos ditadores de Cuba, ao chavismo e a Nicolas Maduro, aos ditadores do Irã, a Kim Jong-Un...
Lula e o PT debocham dos democratas e das democracias e os seus apoiadores, negacionistas como são, os apoiam.
Lula é o PT se movimentam pelos interesses do que existe de pior no mundo e seus apoiadores os seguem.
■■■Apoiem, se querem apoiar, mas também podem refletir sobre o que estão apoiando.
Dependendo de como se volta para o mundo, seria melhor que não voltassem!
O Brasil Brasil nada se beneficia das andanças caras e dos posicionamentos inconsequentes de para onde o "Brasil" voltou.
Pois é.
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