quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

Vera Magalhães - Frente ampla, parte 2

O Globo

Com chapa Boulos-Marta, Lula replica ideia que levou a aliança com Alckmin e mostra maior poder de articulação que Bolsonaro

Desde que começou seu caminho de volta à Presidência, Lula parece ter aprimorado uma qualidade que sempre lhe foi atribuída: promover encontros improváveis na política. Foi um espanto generalizado quando vieram a público as primeiras conversas para a composição da chapa Lulalckmin. Quem se lembrava dos impropérios lançados de parte a parte na eleição de 2006 jurava ser impossível unir o petista e o ex-tucano na mesma chapa. E olha no que deu.

O segundo turno foi pela mesma linha, com a criação da frente ampla que juntou no barco a ex-oponente Simone Tebet, que virou ministra. Na composição do governo, o presidente eleito resolveu exercitar o dom de convencer quem está confortável numa posição a aceitar outra para lá de espinhosa. Funcionou com José Múcio, deu errado com Josué Gomes.

Na virada de 2023 para 2024, Lula fez duas apostas mais arriscadas: tirar Ricardo Lewandowski das perspectivas vantajosas de aposentadoria do STF e portas abertas na iniciativa privada para assumir o Ministério da Justiça; e levar Marta Suplicy de volta ao seio petista. E não é que ambas vão avançando casas a passos largos?

A chapa Guilherme Boulos e Marta vem da mesma incubadora que gestou Lulalckmin. Parte do mesmo diagnóstico sobre a polarização: a necessidade de quebrá-la e de tornar o cabeça de chapa — antes o próprio Lula e depois Boulos, em quem todos veem profundas semelhanças com o líder metalúrgico que ascendeu nos anos 1970 — mais palatável ao complexo eleitor de São Paulo. Funcionou em 2022.

A diferença no Estado de São Paulo entre Bolsonaro e Lula foi bem inferior à registrada entre Bolsonaro e Fernando Haddad quatro anos antes, e esse resultado foi tão importante quanto a vitória no Nordeste para determinar a eleição do petista.

Com Marta, a missão será dupla: conquistar corações e mentes num eleitorado de centro, ou mesmo conservador não radical, mas também neutralizar a rejeição à ex-prefeita entre os simpatizantes do próprio PT e da esquerda.

Existe um estigma para quem deixa o PT, partido sem sombra de dúvida com a mais clara identidade (ame-o ou odeie-o) da política brasileira. Para o petista, o desertor sempre será um traidor. Para os demais, sempre será um petista. Marta sofreu com essa escrita nos anos em que permaneceu fora do partido.

Sua oposição ferrenha ao bolsonarismo e sua militância aguerrida para ajudar na composição da frente ampla, somadas ao fato de nunca ter rompido pessoalmente com Lula, lhe renderam a reabilitação, mesmo tendo votado pelo impeachment de Dilma Rousseff. Um caso único, pode-se dizer.

Não se sabe como isso será assimilado de forma orgânica pelo eleitor e por Boulos, que claramente recebeu um prato feito de alguém a quem não pode contrariar caso deseje ser, de fato, um candidato com chance de vitória e bom cenário de governabilidade caso ela se efetive.

Marta tem na aproximação de seu chefe até ontem, Ricardo Nunes, o álibi perfeito para trocar de time de forma tão abrupta. Terá de equacionar a presença na chapa com uma espécie de voto de silêncio para não criticar a gestão de que fez parte. Não é impossível, dado seu legado concreto de obras e políticas públicas na cidade, mas é algo que será explorado exaustivamente pelo time de marketing de Nunes e, caso seja candidato, de Ricardo Salles, o bolsonarista raiz cuja candidatura ainda não está garantida.

O jogo em São Paulo vai ganhando, assim, contornos definitivamente nacionais. E Lula dá uma chave de corpo em Bolsonaro saindo na frente na montagem de seu lado do tabuleiro, enquanto o ex-presidente brinca de fazer muxoxo entre os dois possíveis candidatos de seu campo. O discurso para a frente ampla, parte 2, está pronto para ser colocado em campo.

 

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