Valor Econômico
Práticas nada republicanas de suspeitos da morte de Marielle revelam corrosão dos princípios que deveriam comandar as ações dos agentes que ocupam o Estado
As práticas nada republicanas dos irmãos
Brazão e do delegado Rivaldo Barbosa foram alcançadas pelas investigações
acuradas da Polícia Federal. As informações obtidas revelam a corrosão dos
princípios e instituições que deveriam comandar as ações dos agentes que ocupam
o Estado.
A República e a democracia dobram os joelhos,
submetidas aos conflitos e contubérnios entre milicianos, traficantes e
ocupantes do Estado que o corroem por dentro como parasitas. Esse achincalhe
aos princípios que deveriam governar as ações do Estado de Direito moderno
abriga em seus subterrâneos as forças da cobiça, ou como diriam Freud e Keynes,
os impulsos do “amor ao dinheiro”. (Keynes prezava como poucos a liberdade
política garantida pelo Estado Moderno e almejava o aperfeiçoamento do
indivíduo. Era, no entanto, crítico feroz e implacável do individualismo
utilitarista e do “amor ao dinheiro”).
Observador das turbulências que assolaram a
sociedade inglesa no século XVII, o pensador liberal Thomas Hobbes imaginou que
o terror disseminado pelos bandos privados na busca de cobiçadas riquezas só
poderia ser contido pela concentração do poder e da força no Leviatã.
Hobbes surpreende a sociedade dos indivíduos no momento em que o Estado submergiu na voragem da guerra religiosa, soçobrou na crise da sociedade governada pelo desejo e pelo medo. Para Hobbes, é permanente a possibilidade de o Estado, o Deus Mortal, ser destruído em uma crise desencadeada pela invasão de ambições “particularistas”.
O Leviatã é uma criatura engendrada pelos
indivíduos livres, atormentados, porém, pela cobiça e pelo medo, sempre prestes
a lançar a sociedade nos torvelinhos da morte e da destruição. É o medo que os
obriga a abrir mão de suas liberdades sem peias para concentrar o poder na
soberania do Estado.
Hobbes considerava a polícia o órgão vital do
Estado moderno, a encarnação de sua essência. Mas a segurança do cidadão
estaria garantida apenas mediante a imposição de controles e limites à função
de polícia, determinados pela lei. A função policial deve ser exercida com
vigor para conter impulsos destrutivos dos indivíduos, mas submetida às
restrições necessárias para impedir que a soberania do Estado se transforme em
arbítrio, ou seja, no exercício de um poder privado pela burocracia estatal
encarregada de vigiar e punir.
Nas repúblicas modernas, se é que temos aqui
algo parecido com isso, figuram entre as cláusulas pétreas aquelas relativas à
representação legitimada pelo voto, à impessoalidade na administração pública,
à constituição de um sistema de poderes e garantias fundados na lei.
O sistema de poderes e garantias ancorado na
lei é o núcleo central do Estado contemporâneo. É isso que o obriga a punir, no
exercício do monopólio da violência, as tentativas de opressão arbitrária de um
indivíduo sobre o outro. Não há como pensar a sobrevivência da sociedade dos
indivíduos-cidadãos sem imaginar a presença do poder repressivo do Estado. O
descumprimento do dever de punir pelo ente público termina por solapar a
solidariedade que cimenta a vida civilizada, lançando a sociedade no desamparo
e na violência sem quartel.
Os códigos da cidadania moderna foram
concebidos como uma reação da maioria mais fraca contra o individualismo
anarquista e reacionário dos que se consideravam com mais direitos e poderes.
Esses, no Brasil, invariavelmente imaginam uma sociedade sem a presença de um
Estado democrático e forte, capaz de intimidar aqueles que pretendam se impor
por meio da intimidação.
Descumprimento do dever de punir pelo ente
público lança a sociedade no desamparo e na violência sem quartel
O contrato social que dá origem ao Leviatã
está contaminado pelos anseios do desejo e pelos temores da violência. O medo é
o medo do outro. Hobbes nega o estado de natureza idílico como o concebeu
Locke, o bom selvagem, tal como também o idealizou Rousseau. Os homens só
convivem pacificamente na sociedade em que o Estado está consolidado, quando os
egoísmos da sociedade civil já estão pacificados pelas leis soberanas.
“Uma vez que a Condição Humana é a da Guerra
de uns contra os outros, cada qual governado por sua própria Razão, e não
havendo algo que o homem possa lançar mão para ajudá-lo a preservar a própria
vida contra os inimigos, todos têm direito a tudo, inclusive ao corpo alheio.
Assim, perdurando esse Direito de cada um sobre todas as coisas, não poderá
haver segurança para ninguém (por mais forte e sábio que seja), de viver
durante todo o tempo que a Natureza permitiu que vivesse.
Hobbes recusa a perenidade do contrato social
e admite que o poder soberano, uma vez estabelecido, estará sempre ameaçado
pelos conflitos da sociedade civil. Uma visão pessimista, nascida dos conflitos
que acompanharam a sociedade moderna em formação.
No livro “Capitalismo, Socialismo e
Democracia”, o economista Joseph Schumpeter manifesta dúvidas a respeito do
sucesso das sociedades capitalistas na gestão da coisa pública. “Acima de tudo
os eleitorados e os parlamentares devem ter um nível intelectual e moral muito
elevado para poderem resistir aos oferecimentos dos trapaceiros e farsantes ou
de outros homens que, não sendo uma coisa nem outra, vão se conduzir da mesma
maneira”.
Nos discursos e manifestações dos irmãos
Brazão sobressaem adesões a um moralismo tosco e hipócrita. Nada é mais imoral
nas sociedades modernas do que o moralismo dos beldroegas. O filósofo Domenico
Losurdo considera inaceitável esse comportamento: “Os protestos moralistas não
são apenas errôneos, mas revelam apego malsão à própria particularidade que é
desfrutada narcisisticamente sob o disfarce da moralidade”. Invocar a própria
virtude, a honestidade ou os bons propósitos para contestar a impessoalidade e
o “formalismo” da lei é a maior corrupção praticada contra a vida democrática.
Montesquieu dizia que há insanidade na substituição da força da lei pela
presunção de virtude auto alegada.
*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp e professor emérito da Universidade Federal de Goiás.
3 comentários:
Cínico.
MAM
Exatamente o que se passa hoje. Grassa a falsa moralidade da boca e atos de muitos que foram eleitos como representantes do povo, ou investidos de autoridade em qualquer esfera de governo e Poder. E pelo que se vê e ouve no noticiário, muita contaminação ou aparelhamento de Órgãos e Instituições estatais, quando não dos agentes públicos à frente deles.
Basta uma moralidade elevada pra resistir-se aos trapaceiros,o intelecto não ajuda muita coisa.
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