Folha de S. Paulo
Salazar, Mussolini, Hitler, Trump, Bolsonaro
-todos tinham um homem para pensar por eles
Em 1932, um jornalista português, António
Ferro, 37 anos, conseguiu o que era dado como impossível: entrevistar o quase
inatingível António de Oliveira Salazar, todo-poderoso de um governo que se
definia como ditadura. Ferro teve com Salazar longas conversas, reunidas num
livro de 300 páginas com o pensamento do ditador de Portugal.
Como foram essas conversas? A bordo de carros em movimento, à mesa de jantar, em torno de "fumegantes caldos verdes" e em passeios a pé por estradas, às vezes "à beira do anoitecer" ou sob "uma chuva miudinha e enervante". As perguntas de Ferro eram curtas, como sói, mas as respostas de Salazar eram caudalosas e demoradas, de páginas e páginas.
Como veterano entrevistador, tiro o chapéu
para António Ferro. Em 1932, não havia gravadores, os alemães só lançariam o
magnetofone em 1935. Ferro teve de anotar tudo a lápis ou caneta, nas terríveis
condições descritas, e Salazar não as deve ter ditado com vagar. E eu queria
ver Ferro taquigrafar no escuro, debaixo de chuva.
Donde só há uma explicação: todas as palavras
atribuídas a Salazar são de Ferro. Por que Salazar se submeteria a tal? Porque
confiava nele. Ferro era culto, ladino, muito inteligente —aliás, amigo dos
modernistas brasileiros e colaborador da revista Klaxon. E os dois tinham muito
em comum: desprezo pelo povo português, aversão ao Judiciário, ódio à
democracia e admiração por Mussolini e Hitler.
A extrema direita costuma ser creditada a
certos governantes. Mas eles talvez fossem apenas os executores da estratégia
de um pensador maléfico, à direita da extrema direita. Ferro pode ter sido para
Salazar o que Marinetti, criador do futurismo, foi para Mussolini; Oswald
Spengler, para Hitler; Steve Bannon, para Donald Trump; e Olavo de Carvalho,
para Bolsonaro. O que nos salva é quando esses governantes se empolgam e
resolvem pensar por conta própria.
2 comentários:
Cruzes!
A última frase do texto está excelente, Ruy Castro! Quando resolvem abrir a boca não sai nada que preste! Kkk
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