domingo, 20 de abril de 2025

O Capital (Prefácio à primeira edição) - Karl Marx

Crítica da Economia Política

A obra, cujo primeiro volume entrego ao público, constitui a continuação do meu escrito publicado em 1859: Zur Kritik der Politischen Oekonomie. Do longo intervalo entre começo e continuação é culpada uma doença de muitos anos que repetidamente interrompeu o meu trabalho.

O conteúdo daquele escrito anterior está resumido no primeiro capítulo deste volume. Isto não aconteceu apenas por causa da conexão e da integralidade. A exposição está melhorada. Tanto quanto o estado das coisas de alguma maneira o permitiu, muitos dos pontos anteriormente apenas aludidos estão aqui desenvolvidos, enquanto inversamente o ali circunstanciadamente desenvolvido é aqui apenas aludido. As seções acerca da história da teoria do valor e do dinheiro naturalmente foram agora completamente suprimidas. Contudo, o leitor do escrito anterior encontra patentes, nas notas do primeiro capítulo, novas fontes para a história daquela teoria.

Todo o começo é difícil — isto vale em qualquer ciência. A compreensão do primeiro capítulo, nomeadamente da seção que contém a análise da mercadoria, constituirá, portanto, a maior dificuldade. Tornei o mais possível popular aquilo que mais de perto diz respeito à análise da substância do valor e da magnitude do valor. A forma-valor, cuja figura acabada é a forma-dinheiro, é muito simples e vazia de conteúdo. Não obstante, o espírito humano, desde há mais de 2000 anos, tem em vão procurado sondar-lhe os fundamentos, enquanto, por outro lado, a análise de formas muito mais plenas de conteúdo e complicadas pelo menos aproximadamente resultou. Por quê? Porque o corpo [já] formado é mais fácil de estudar do que a célula do corpo. Além disso, na análise das formas económicas não podem servir nem o microscópio nem os reagentes químicos. A força da abstração tem de os substituir a ambos. Para a sociedade burguesa, porém, a forma-mercadoria do produto de trabalho ou a forma-valor da mercadoria é a forma económica celular. Ao não instruído a análise desta parece perder-se em meras subtilezas. Trata-se aqui de fato de subtilezas, só que, porém, do mesmo modo que delas se trata na anatomia micrológica.

À exceção da secção sobre a forma-valor não se poderá, portanto, acusar este livro de difícil inteligibilidade. Suponho, naturalmente, leitores que querem aprender algo de novo e que, portanto, também querem pensar por si.

O físico observa processos da Natureza ou onde aparecem na forma mais pregnante e menos encoberta por influências perturbadoras ou, quando possível, faz experimentos em condições que asseguram o curso puro do processo. O que eu tenho de investigar nesta obra é o modo de produção capitalista e as relações de produção e de troca que lhe correspondem. O seu lugar clássico tem sido, até agora, a Inglaterra. Esta é a razão pela qual ela serve de ilustração principal do meu desenvolvimento teórico. Se, contudo, o leitor alemão farisaicamente encolher os ombros ante a situação dos operários ingleses da indústria e da agricultura ou se otimistamente se tranquilizar porque na Alemanha durante muito tempo as coisas ainda não estarão tão más, terei de lhe lembrar: De te fabula narratur!

Em si e para si, não se trata do grau maior ou menor de desenvolvimento dos antagonismos sociais, os quais provêm das leis naturais da produção capitalista. Trata-se dessas próprias leis, dessas tendências que operam e se impõem com férrea necessidade. O país industrialmente mais desenvolvido mostra ao menos desenvolvido apenas a imagem do seu próprio futuro.

Mas abstraiamos disso: onde a produção capitalista está completamente implantada entre nós, p. ex., nas fábricas propriamente ditas, a situação é muito pior do que na Inglaterra, porque falta o contrapeso das leis fabris. Em todas as outras esferas, atormenta-nos, assim como a todo o resto da Europa Ocidental continental, não só o desenvolvimento da produção capitalista como também a falta do seu desenvolvimento. Além das calamidades modernas, aflige-nos toda uma série de calamidades herdadas, provenientes de continuarem a vegetar modos de produção arcaicos, antiquados, com o seu séquito de anacrónicas relações sociais e políticas. Sofremos não apenas por causa dos vivos, mas também por causa dos mortos. Le mort saisit le vif!

A estatística social da Alemanha e do resto da Europa Ocidental continental é, em comparação com a inglesa, miserável. Contudo, levanta suficientemente o véu para fazer pressentir por detrás dele uma cabeça de Medusa. Assustar-nos-íamos com a nossa própria situação se os nossos governos e parlamentos nomeassem, tal como em Inglaterra, comissões de inquérito periódicas acerca das condições económicas, se essas comissões estivessem armadas, tal como em Inglaterra, com a mesma plenitude de poderes para a investigação da verdade, se se conseguisse encontrar para este efeito homens tão competentes, imparciais e sem contemplações como são os inspectores fabris da Inglaterra, os seus relatores médicos sobre Public Health (Saúde Pública), os seus comissários de inquérito acerca da exploração das mulheres e crianças, acerca da situação de habitação e alimentação, etc. Perseu servia-se de um elmo de bruma para a perseguição de monstros. Nós enfiamos profundamente o elmo de bruma sobre os olhos e os ouvidos para podermos negar a existência dos monstros.

Temos de não nos iludir acerca disto. Assim como a guerra da independência americana do século XVIII tocou a rebate para a classe média europeia, assim também a guerra civil americana do século XIX tocou a rebate para a classe operária europeia. Em Inglaterra, o processo de revolucionamento é palpável. Num certo ponto culminante terá de se repercutir no continente. Aí movimentar-se-á em formas mais brutais ou mais humanas, segundo o grau de desenvolvimento da própria classe operária. Sem considerar motivos mais elevados, o interesse mais próprio das classes agora dominantes impõe-lhes, portanto, a remoção de todos os obstáculos legalmente controláveis que entravem o desenvolvimento da classe operária. Por isso eu dei um lugar tão circunstanciado neste volume, entre outras coisas, à história, ao conteúdo e aos resultados da legislação fabril inglesa. Uma nação deve e pode aprender com outra. Mesmo quando uma sociedade chega a descobrir a pista da lei natural do seu movimento — e o fim último desta obra é desvendar a lei económica do movimento da sociedade moderna —, ela não pode nem saltar por cima nem pôr de lado por decreto fases naturais de desenvolvimento. Mas pode encurtar e atenuar as dores do parto.

Para evitar possíveis mal-entendidos uma palavra [ainda]. Eu de modo nenhum pinto de cor-de-rosa as figuras do capitalista e do proprietário fundiário. Mas trata-se aqui de pessoas apenas na medida em que são a personificação de categorias económicas, portadores de determinadas relações de classes e interesses. Menos do que qualquer outro pode o meu ponto de vista — que apreende o desenvolvimento da formação económica da sociedade como um processo histórico natural — tornar o indivíduo responsável por relações, das quais ele socialmente permanece criatura, por muito que subjetivamente ele se possa elevar acima delas.

No domínio da economia política a investigação científica livre não encontra apenas o mesmo inimigo que em todos os outros domínios. A natureza peculiar da matéria que manuseia chama ao campo da luta contra ela as paixões mais violentas, mais mesquinhas e mais odiosas do peito humano, as Fúrias do interesse privado. A Igreja Superior inglesa, p. ex., mais depressa perdoa o ataque a 38 dos seus 39 artigos de fé do que a 1/39 do seu rendimento em dinheiro. Hoje em dia o próprio ateísmo é uma culpa levis, em comparação com a crítica das relações de propriedade tradicionais. Contudo, há aqui um progresso que se não pode desconhecer. Remeto, p. ex., para o Livro Azul publicado nas últimas semanas: Correspondence with Her Majesty's Missions Abroad, Regarding Industrial Questions and Trades Unions. Os representantes externos da coroa inglesa exprimem aqui secamente que, na Alemanha, França, em suma, em todos os estados civilizados [Kulturstaaten] do continente europeu, uma transformação das relações existentes entre capital e trabalho é tão perceptível e tão inevitável como em Inglaterra. Ao mesmo tempo, do outro lado do oceano Atlântico, o senhor Wade, vice-presidente dos Estados Unidos da América do Norte, declarava em meetings públicos: depois da abolição da escravatura a transformação das relações de capital e de propriedade fundiária entrou na ordem do dia! Estes são sinais dos tempos que não se deixam esconder por mantos de púrpura ou sotainas pretas. Não significam que amanhã acontecerá um milagre. Mostram como mesmo nas classes dominantes desponta o pressentimento de que a sociedade atual não é um cristal sólido, mas um organismo capaz de transformação e que está constantemente em processo de transformação.

O segundo volume deste escrito tratará do processo de circulação do capital (Livro II) e das configurações do processo total (Livro III); o terceiro e último (Livro IV), da história da teoria.

Todo o juízo da crítica científica é para mim bem-vindo. Face aos pré-juízos da chamada opinião pública, a quem nunca fiz concessões, vale para mim, tal como anteriormente, a divisa do grande florentino:

Segui il tuo corso, e lascia dir le genti!*

London, 25 de Julho de 1867

*Segue o teu caminho e deixa falar a gente! — paráfrase das palavras da obra de Dante A Divina Comédia, «O Purgatório», canto V

 

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