Valor Econômico
É preciso perguntar o que os ofensores
representam no Senado da República, porque agrediram a unidade da Federação que
deveriam representar e claramente não representam
Inacreditáveis as grosserias de membros da
Comissão de Infraestrutura do Senado Federal dirigidas à ministra do Meio
Ambiente, Marina Silva, no final de maio, quando de seu depoimento sobre áreas
de conservação na região Norte. Elas obscureceram os vários dilemas de fato em
jogo nas aparentes discordâncias de um falso embate.
Os insultos revelaram graves preconceitos
contra ela individualmente, contra o que ela é, como mulher e como ministra de
Estado numa área sensível, a ambiental, assunto do qual é internacionalmente
qualificada.
Marina falou em política de Estado, não de partido. Um dos opositores do governo falou, portanto, como opositor do Estado, em pendências de 30 anos, em que a questão foi abordada por diferentes governos e partidos.
Os agressores queriam acusar o atual governo,
no que revelaram que são porta-vozes de uma das facções que se alimentam da
polarização ideológica sobre a qual o bolsonarismo nasceu e cresceu. A de falta
de alternativas para que a sociedade brasileira possa jogar o jogo da
democracia. Polarização fascista e autoritária que esconde o empenho de
legitimar o pressuposto do partido pessoal e único.
Em nome dessa modalidade de delinquência
política, Marina Silva foi convocada para ser satanizada. Não para ser ouvida
como protagonista da execução de um dos aspectos mais importantes do que é o
esboço de um projeto de nação.
Os preconceitos recebem nomes, mas não são
conceituais. São xingamentos. Nesse sentido, não tem atenuantes. Os autores da
agressão e seus cúmplices reagiram às consequências de sua agressão, fatiando
as ofensas. Como a de um deles dizer que não se referia à mulher, mas à
ministra.
Um equívoco, na medida em que a mulher
convocada para funções de Estado frequentemente o é por ser mulher. Condição
recoberta pela de ministra sem que deixe de ser mulher. As pessoas, em todos os
âmbitos de sua condição humana, na multiplicidade e diversidade de seus papéis,
são uma totalidade social. Nas ofensas a Marina Silva, a sociedade inteira é
ofendida, mesmo a mãe, o pai e a parentela toda de quem a ofendeu.
Uma única modalidade de preconceito já diz
tudo sobre quem o emprega para depreciar outra pessoa, e nele estão implícitos
vários outros preconceitos, vários insultos. Uma única manifestação
preconceituosa já atira sobre a vítima o que é de fato um sistema de ofensas
conexas.
Para compreender o que aconteceu, é preciso
perguntar a quem ou o que os ofensores representam no Senado da República.
Porque agrediram a unidade da Federação que deveriam representar e claramente
não representam. Insultaram em nome de interesses de que são porta-vozes, de
que só deram os indícios. Defender os interesses do país lhes permitiria
compreender as políticas do Estado brasileiro, e não só as de um governo.
A ministra Marina Silva foi vítima de
preconceitos e ofensas por atacado em cada um dos insultos que recebeu.
Ministra de Estado, personifica ela uma dimensão da realidade do país que,
atacada e ofendida, atinge a todos os cidadãos.
Os questionamentos de província foram de
assuntos da nação, e, por isso, da União. A costa do Amapá não é do Amapá, é do
Brasil. A Floresta Amazônica é bem nacional, não é dos diferentes estados
amazônicos. O oxigênio de que dependem os humanos não se destina só à
respiração dos amazônidas.
Isso significa que os governantes não têm
tido consciência de que nossa sociedade se baseia em um anômalo desenvolvimento
econômico, social e político desigual. O Brasil nunca teve, propriamente, uma
política baseada no reconhecimento do caráter problemático desse
desenvolvimento. E que para ele não haverá solução se cada estado agir como
nação desconectada do país.
Não só os estados, mas também as nações
indígenas nos vários estados localizadas. A senadora Waiãpi distorcidamente na
comissão representa os brancos do Amapá. Fazia com a cabeça movimentos de
concordância com o que dizia o senador ao seu lado em defesa de interesses que
não são os das populações indígenas do estado.
Acompanho a formação e a trajetória de Marina
Silva desde os anos 1970, quando fazia pesquisa sociológica na Amazônia e no
Acre. Dom Moacir Grecchi, bispo de Rio Branco, me falou sobre ela, originária
de um seringal.
Ela foi alfabetizada e socializada como
pessoa de uma sociedade dual e pluralista. Ganhou uma compreensão de alto nível
do que é o Brasil e do que são suas carências mais agudas, não só como
carências de indivíduos, mas carências de um país e de uma sociedade atrasada e
retrógrada.
Sua exposição na comissão foi tecnicamente
perfeita. A sociedade e a condição humana são sua referência nos diagnósticos
que faz e nas soluções que perfilha ou propõe. Ela fala como cidadã do mundo.
*José de Souza Martins é
sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da
Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall
(1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras.
Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre
a incerteza do instante” (Editora Unesp, São Paulo, 2022).
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