sexta-feira, 6 de junho de 2025

A cruz de Marina Silva - José de Souza Martins

Valor Econômico

É preciso perguntar o que os ofensores representam no Senado da República, porque agrediram a unidade da Federação que deveriam representar e claramente não representam

Inacreditáveis as grosserias de membros da Comissão de Infraestrutura do Senado Federal dirigidas à ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, no final de maio, quando de seu depoimento sobre áreas de conservação na região Norte. Elas obscureceram os vários dilemas de fato em jogo nas aparentes discordâncias de um falso embate.

Os insultos revelaram graves preconceitos contra ela individualmente, contra o que ela é, como mulher e como ministra de Estado numa área sensível, a ambiental, assunto do qual é internacionalmente qualificada.

Marina falou em política de Estado, não de partido. Um dos opositores do governo falou, portanto, como opositor do Estado, em pendências de 30 anos, em que a questão foi abordada por diferentes governos e partidos.

Os agressores queriam acusar o atual governo, no que revelaram que são porta-vozes de uma das facções que se alimentam da polarização ideológica sobre a qual o bolsonarismo nasceu e cresceu. A de falta de alternativas para que a sociedade brasileira possa jogar o jogo da democracia. Polarização fascista e autoritária que esconde o empenho de legitimar o pressuposto do partido pessoal e único.

Em nome dessa modalidade de delinquência política, Marina Silva foi convocada para ser satanizada. Não para ser ouvida como protagonista da execução de um dos aspectos mais importantes do que é o esboço de um projeto de nação.

Os preconceitos recebem nomes, mas não são conceituais. São xingamentos. Nesse sentido, não tem atenuantes. Os autores da agressão e seus cúmplices reagiram às consequências de sua agressão, fatiando as ofensas. Como a de um deles dizer que não se referia à mulher, mas à ministra.

Um equívoco, na medida em que a mulher convocada para funções de Estado frequentemente o é por ser mulher. Condição recoberta pela de ministra sem que deixe de ser mulher. As pessoas, em todos os âmbitos de sua condição humana, na multiplicidade e diversidade de seus papéis, são uma totalidade social. Nas ofensas a Marina Silva, a sociedade inteira é ofendida, mesmo a mãe, o pai e a parentela toda de quem a ofendeu.

Uma única modalidade de preconceito já diz tudo sobre quem o emprega para depreciar outra pessoa, e nele estão implícitos vários outros preconceitos, vários insultos. Uma única manifestação preconceituosa já atira sobre a vítima o que é de fato um sistema de ofensas conexas.

Para compreender o que aconteceu, é preciso perguntar a quem ou o que os ofensores representam no Senado da República. Porque agrediram a unidade da Federação que deveriam representar e claramente não representam. Insultaram em nome de interesses de que são porta-vozes, de que só deram os indícios. Defender os interesses do país lhes permitiria compreender as políticas do Estado brasileiro, e não só as de um governo.

A ministra Marina Silva foi vítima de preconceitos e ofensas por atacado em cada um dos insultos que recebeu. Ministra de Estado, personifica ela uma dimensão da realidade do país que, atacada e ofendida, atinge a todos os cidadãos.

Os questionamentos de província foram de assuntos da nação, e, por isso, da União. A costa do Amapá não é do Amapá, é do Brasil. A Floresta Amazônica é bem nacional, não é dos diferentes estados amazônicos. O oxigênio de que dependem os humanos não se destina só à respiração dos amazônidas.

Isso significa que os governantes não têm tido consciência de que nossa sociedade se baseia em um anômalo desenvolvimento econômico, social e político desigual. O Brasil nunca teve, propriamente, uma política baseada no reconhecimento do caráter problemático desse desenvolvimento. E que para ele não haverá solução se cada estado agir como nação desconectada do país.

Não só os estados, mas também as nações indígenas nos vários estados localizadas. A senadora Waiãpi distorcidamente na comissão representa os brancos do Amapá. Fazia com a cabeça movimentos de concordância com o que dizia o senador ao seu lado em defesa de interesses que não são os das populações indígenas do estado.

Acompanho a formação e a trajetória de Marina Silva desde os anos 1970, quando fazia pesquisa sociológica na Amazônia e no Acre. Dom Moacir Grecchi, bispo de Rio Branco, me falou sobre ela, originária de um seringal.

Ela foi alfabetizada e socializada como pessoa de uma sociedade dual e pluralista. Ganhou uma compreensão de alto nível do que é o Brasil e do que são suas carências mais agudas, não só como carências de indivíduos, mas carências de um país e de uma sociedade atrasada e retrógrada.

Sua exposição na comissão foi tecnicamente perfeita. A sociedade e a condição humana são sua referência nos diagnósticos que faz e nas soluções que perfilha ou propõe. Ela fala como cidadã do mundo.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre a incerteza do instante” (Editora Unesp, São Paulo, 2022).


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