Foram três manifestações distintas. Todas na cidade de São Paulo e na mesma semana, como que encadeadas. A coincidência delas, ainda que não seja inusitada, sugere alguma reflexão.
Quarta-feira, dia 22, foi o dia do abraço coletivo na Paulista, concebido como "um gesto de amor à cidade e respeito ao próximo", além de um repúdio aos atos de violência contra homossexuais ocorridos recentemente na região. Centenas de pessoas deram-se às mãos ao meio-dia, caminhando simbolicamente na contramão da avenida, um dos maiores ícones da cidade e expressão perfeita da vida frenética, tensa e impessoal que tem feito a fama dos paulistanos. Bela demonstração de que por aqui também há ações cívicas no sentido mais básico da expressão, qual seja, o da conduta que busca compartilhar o desafio de construir uma ordem social justa, igualitária e governada por todos e para todos.
No dia seguinte, sob o embalo do Corpus Christi, foi a vez da Marcha para Jesus, promovida por igrejas e congregações evangélicas com o intuito de expressar publicamente a fé, o amor e a exaltação do nome do filho de Deus, que precisaria ser mais valorizado. Muitos milhares de pessoas foram às ruas proclamar "o Senhorio de Jesus", cantar e dançar ao som de bandas e cantores gospel. Diversas famílias aproveitaram para agradecer os milagres e as dádivas recebidas.
Pelo andar da carruagem, porém, o que se viu na manifestação foram mais trevas do que luz. Valendo-se do nome e da imagem de Jesus, a caminhada desfilou uma sucessão de ataques aos que são considerados os atuais piores "inimigos" da cristandade, verdadeiros aliados do demônio: os homossexuais, atacados em si, em seus direitos e em suas reivindicações. Puxada por pastores-políticos, a passeata não perdoou algumas instituições do País (o STF, antes de tudo) que, por se mostrarem sensíveis a temas tidos como tabus, deveriam ser vistas como auxiliares do processo de entronização de Satanás na Terra.
O ato foi festivo e familiar na formatação geral, mas teve um subtexto que lhe deu o tom de marcha fúnebre, uma contramarcha, triste na evolução e reacionária no objetivo. Deixou claro que a fé muitas vezes caminha abraçada com o fanatismo e o fervor obscurantista, veículos certos da intolerância e da discriminação. Para piorar, a marcha forneceu palco para campanhas políticas explícitas, deixando-se arrastar por elas.
Por último, fechando a semana, o domingo assistiu à 15.ª Parada Gay, festa alternativa que há anos contagia a cidade e a insere no circuito das mais avançadas lutas por direitos. São Paulo se acostumou e se identificou tanto com ela que chegam a surpreender as manifestações homofóbicas que ainda ocorrem entre os paulistanos. Os gays dão vazão em alto e bom som, de modo espalhafatoso, irreverente e alegre, muitas vezes chocante, a uma agenda sintonizada com o modo de vida atual, em cujo centro está um sempre mais ampliado desejo de liberdade. Põem-se no meio da democratização social em curso, processo que encontra resistência em hábitos seculares, manifestações de fé cega e fanática, postulações machistas de autoridade, fundamentalismos de todo tipo. A parada por eles organizada proclama um mundo estruturado pela diversidade, pela tolerância, pelo respeito à liberdade de cada um e aos direitos de todos, mundo que não existe de modo pleno, mas já dá mostras de sua potência civilizacional. O tema da parada 2011 fala por si: "Amai-vos uns aos outros: basta de homofobia!".
O registro das três manifestações mostra uma São Paulo de múltiplas comunidades e agendas, uma cidade plural, marcada pela diversidade - uma terra onde todos têm voz e se podem manifestar. A Marcha pela Descriminalização da Maconha, realizada semanas atrás, deve ser igualmente lembrada. A cidade condensa essa pluralidade em sua própria dinâmica, em seus bairros étnicos, em seu multiculturalismo, nos milhões de imigrantes europeus, escravos africanos, brasileiros de outros Estados, latino-americanos, que ajudaram a construí-la e cujos descendentes aqui permaneceram, amalgamados e pouco segmentados entre si. Uma cidade plural e sem guetos.
Com o passar do tempo São Paulo se tornou uma cidade hipermoderna, globalizada, que deslocou a vida tradicional, que prevalecia soberana, ainda que não com exclusividade. Basta lembrar que foi aqui que se realizou a Semana de Arte Moderna, em 1922, com a qual se anunciou o destino que estaria reservado à futura metrópole. Hoje a cidade avança sob os fluxos de uma vida mais "líquida", tecnológica, pouco controlável e dificilmente governada. Não deixou, porém, de ser capitalista nem conseguiu civilizar seu capitalismo, que continua responsável pela reiteração do que há de desigualdade, pobreza e alienação na cidade. A "vida líquida" prevalecente também não soterrou a "vida sólida" de antes, que encontra muitas maneiras de se reproduzir, recebendo oxigênio até mesmo do que a hipermodernidade produz de mais típico. A liberdade e a tolerância incentivadas pela "vida líquida", por exemplo, fazem a fé cega e as convicções rígidas da "vida sólida" se encrespar e sobreviver.
Gays e evangélicos, com suas marchas e contramarchas, mostram uma São Paulo em transição. O predomínio de um modo "líquido" de vida não produz imediatamente uma boa sociedade, nem mesmo uma sociedade melhor, pois oculta demasiadas distorções e injustiças, obriga a que se viva no risco e na incerteza, de maneira excessivamente frenética e fora de controle. Nem sequer facilita a mobilização social. Mas a "vida sólida" de antes não tem mais como nos dar segurança ou nos orientar, o que faz com que tenhamos de viver entre dois mundos, um que ainda não se afirmou plenamente e outro que pena para sobreviver.
Assim com São Paulo, assim com a maior do planeta. Bem-vindos ao século 21, no correr do qual estaremos imersos numa batalha para saber que eixo, que ética e que ideias estruturarão a "vida líquida" em que passaremos a viver.
Professor titular de Teoria Política da UNESP.
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
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