terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Guerra civil na Bahia:: Cláudio Gonçalves Couto

Num momento em que a boa fase econômica do país permite olhar para o futuro de forma alentada, a calamitosa situação provocada pela greve de policiais militares na Bahia não permite esquecer que o país ainda padece de seríssimos problemas atinentes à qualidade de suas instituições, de seus recursos humanos e das políticas públicas em diversas áreas. Problemas tão sérios que permitem questionar até que ponto a onda positiva é sustentável e um necessário salto de qualidade está ao alcance. No caso em tela, a precariedade da segurança pública, elementar para a efetividade de todas as demais políticas governamentais, revela uma fragilidade institucional mais profunda do que perceptível no movimento paredista.

A debilidade é evidenciada por um dado tétrico: o volume de homicídios na Região Metropolitana de Salvador atingiu a casa da centena em uma semana de greve. Por si só tal cifra já seria aterradora, pois corresponde ao dobro do registrado na semana precedente - cinquenta e duas mortes, um número altíssimo. Mas há algo pior, notado pelo governador do Estado, Jaques Wagner. Em entrevista à Folha de S. Paulo de ontem, ele acusa policiais militares de, utilizando armas, ameaçarem passageiros de ônibus, bloquearem vias de trânsito e, o mais terrível, assassinarem moradores de rua (algo que o governador admite ser, por enquanto, uma suspeita). Se tais ações são por si só lastimáveis, simplesmente por já terem acontecido, elas embutem algo ainda mais preocupante em relação ao futuro: serão os policiais perpetradores dessa barbárie os responsáveis por zelar pela segurança dos cidadãos e pela preservação da lei e da ordem após o final da greve. Dá para confiar? Como cantou Chico Buarque, "chame o ladrão!".

Greve dos PMs baianos revela instituições frágeis

Por um lado, o evento evidencia um problema institucional das polícias país afora, que repetidamente emerge: uma cultura de truculência e banalização de ações ilegais. Quando tal modo de agir se dirige a criminosos ordinários, justiçados ao arrepio do direito, alguns segmentos da sociedade brasileira - em particular da mídia e da classe política - dão de ombros ou até mesmo aplaudem. "Menos um", diriam certos cronistas midiáticos da violência cotidiana, apelando ao atavismo dos espectadores. Vez por outra, contudo, essa mesmíssima truculência, corriqueiramente empregada contra bandidos, dirige-se a cidadãos comuns, que ou não cometeram crime algum, ou apenas ultrapassaram a fronteira jurídica dos microdelitos.

Quando os vilipendiados habitam periferias das grandes cidades, quase nada vira notícia, pois os atingidos não dispõem nem de status social, nem de conexões que lhes permitam vocalizar seus reclamos e denunciar a violência sofrida. Já quando a truculência atinge os que dispõem de status e poder político ou econômico, há repercussão - o caso das ações desastradas da PM paulista na USP não nos deixam mentir. Para justificar tais deslizes, os porta-vozes da polícia costumam dizer que não se trata de um problema da corporação, mas de um ato individualizado de homens que não honram a farda. Nada mais enganoso, pois o caráter reiterado das transgressões (das quais é preciso escusar-se apenas quando se tornam públicas) revela que a honra corporativa passa, em boa medida, por ações de violência e demonstrações de força incompatíveis com a ordem legal vigente em qualquer Estado democrático de direito.

Os eventos na Bahia explicitam que o hábito de lançar mão da violência de acordo com seu próprio arbítrio pode, em circunstâncias particulares, levar ao flerte com a guerra civil. Senão, como classificar uma situação em que homens armados tomam de assalto um parlamento, promovem o terror contra cidadãos comuns e assassinam indivíduos vulneráveis para coagir o poder constituído a fazer-lhes concessões? Tanto mais grave por se tratarem justamente de "homens da lei".

Por outro lado, é forçoso reconhecer que os PMs baianos têm uma causa justa. Assim como os professores de escolas públicas, policiais recebem salários aviltantes. Todavia, se no caso dos professores uma política nacional voltada a garantir-lhes um piso nacional mínimo foi implantada e deu início a um lentíssimo processo de recuperação da dignidade e das condições de trabalho da categoria, o mesmo não aconteceu com os policiais. O governador da Bahia tem razão quando observa que o movimento mira na PEC-300, que visa justamente conferir a policiais uma remuneração nacional mínima. E não seria o caso, então, de buscar uma solução para o pleito? Certamente isto não deve ocorrer como fruto de uma chantagem de criminosos fardados, que colocam uma faca no pescoço do governo com seu motim. A razão legítima é que dificilmente qualquer política de segurança prosperará no país sem que salários condignos sejam pagos a policiais - sobretudo num momento de melhora na remuneração dos trabalhadores brasileiros em geral, aumentando a disparidade e, por conseguinte, o desprestígio social da categoria e sua insatisfação.

O mais sério obstáculo à elevação da remuneração é o passivo previdenciário do setor público. Enquanto certas categorias do funcionalismo recebem altos salários, mas são pouco numerosas, impactando menos as combalidas contas previdenciárias do serviço público, professores e policiais são muitos, e que qualquer aumento de seus salários gera de imediato um novo choque de gastos previdenciários. Neste momento, em que o governo federal tenta aprovar o fundo de previdência dos servidores, é o caso de articular sua aprovação com políticas de reestruturação das condições de carreira e remuneração de setores do funcionalismo, permitindo políticas salariais necessárias ao bom trabalho e sustentáveis no longo prazo. Mudanças nessa direção teriam inclusive o condão de melhorar o recrutamento, atraindo gente mais capacitada para funções primordiais do serviço público. Nada disso será viável, entretanto, sem que se olhe também para a questão previdenciária.

Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP

FONTE: VALOR ECONÔMICO

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