Histórias do Moreno
Jorge Bastos Moreno
BRASÍLIA - Primeiro, começaram a comparar, com muita propriedade, aliás, as manifestações de agora com as "Diretas". Agora, desde o início da semana, não se fala em outra coisa, senão na "Constituinte" da Dilma. Falar do "Senhor Diretas" e do "Senhor Constituinte", ao mesmo tempo, até que poderia parecer normal, não se tratassem eles da mesma pessoa: Ulysses Guimarães.
Quem resistiria a essa convocação? Claro que o velho político, que desapareceu no mar há 20 anos, não se fez de rogado e, como na música, reapareceu aqui, com a força dos seus discursos, dizendo: "Foram me chamar?/ Eu estou aqui./ O que é que há?".
O que você vai ler aqui são frases autênticas de Ulysses Guimarães, perpetuadas nos seus discursos sobre a campanha das Diretas, a convocação e a promulgação da Constituinte. As perguntas, naturalmente, são recursos para expor o pensamento sempre atualíssimo do homem que, em determinado momento da História, foi o político mais importante do país.
O que o senhor acha da "Constituinte" da Dilma?
Não é a Constituição perfeita. Se fosse perfeita, seria irreformável. Ela própria, com humildade e realismo, admite ser emendada, até por maioria mais acessível, dentro de cinco anos. Nosso desejo é o da nação: que este plenário não abrigue outra Assembleia Nacional Constituinte. Porque, antes da Constituinte, a ditadura já teria trancado as portas desta Casa.
Mas é a presidente da República que a está convocando.
Uma Constituição é tanto mais legítima quanto mais ampla for a discussão de seus termos. Peço-lhes permissão para citar um trecho do discurso que o saudoso estadista Tancredo Neves pronunciou neste mesmo recinto, quando o convocamos para ser o candidato à Presidência da República. "As Constituições", dizia o meu companheiro e grande amigo, "não são obras literárias, nem documentos filosóficos. Elas não surgem do espírito criador de um homem só, por mais privilegiado em sabedoria que seja esse homem. Tampouco podem ser a codificação de propósitos de um ou outro grupo que exerça influência, legítima ou ilegítima, sobre a nação. A Constituição é uma Carta de compromissos assumidos livremente pelos cidadãos, em determinado tempo e sociedade".
Quer dizer que ninguém pode mudá-la?
A Constituição, certamente, não é perfeita. Repito: ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da pátria. Conhecemos o caminho maldito: rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio, o cemitério. A persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia. Quando, após tantos anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o estatuto do homem, da liberdade e da democracia, bradamos por imposição de sua honra: temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. Amaldiçoamos a tirania onde quer que ela desgrace homens e nações, principalmente na América Latina.
Fazer essa Constituição deu muito trabalho?
Foi de audácia inovadora a arquitetura da Constituinte, recusando anteprojeto forâneo ou de elaboração interna. O enorme esforço é dimensionado pelas 61.020 emendas, além de 122 emendas populares, algumas com mais de um milhão de assinaturas, que foram apresentadas, publicadas, distribuídas, relatadas e votadas no longo trajeto das subcomissões à redação final. A participação foi também pela presença, pois, diariamente, cerca de dez mil postulantes franquearam, livremente, as 11 entradas do enorme complexo arquitetônico do Parlamento, na procura dos gabinetes, comissões, galerias e salões. Há, portanto, representativo e oxigenado sopro de gente, de rua, de praça, de favela, de fábrica, de trabalhadores, de cozinheiras, de menores carentes, de índios, de posseiros, de empresários, de estudantes, de aposentados, de servidores civis e militares, atestando a contemporaneidade.
Qual o motivo de o povo estar nas ruas e até onde isso pode chegar?
As necessidades básicas do homem estão nos estados e nos municípios. Neles deve estar o dinheiro para atendê-las. A federação é a governabilidade. A governabilidade da nação passa pela governabilidade dos estados e dos municípios. O desgoverno, filho da penúria de recursos, acende a ira popular, que invade os paços municipais, arranca as grades dos palácios e acabará chegando à rampa do Palácio do Planalto.
Quer dizer que o povo nas ruas pode mudar?
O Estado capitulou na entrega do Acre, a sociedade retomou-o com as foices, os machados e os punhos de Plácido de Castro e seus seringueiros. O Estado autoritário prendeu e exilou. A sociedade, com Teotônio Vilela, pela anistia, libertou e repatriou. A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram. Foi a sociedade, mobilizada nos colossais comícios das Diretas-já, que, pela transição e pela mudança, derrotou o Estado usurpador.
O que o senhor viu nas campanhas das "Diretas"?
Pela décima sexta vez caminhei pelo Brasil entre multidões, mais uma vez vi a pavorosa geografia da fome, do medo e da revolta, das afrontosas desigualdades sociais. As praças e ruas do Brasil se encheram de colossais e sonoras assembleias de protesto e repúdio ao governo. Vi milhões de homens e mulheres desempregados e subempregados pela insânia da recessão, reclamando o direito de ajudarem a construir a prosperidade da nação. Vi os trabalhadores rejeitando o confisco da lei salarial desumana, que os obriga a pagar, com a deterioração de seus ganhos, os custos de uma pretensa política de combate à inflação. Vi, também, a força da mulher brasileira, cidadã, trabalhadora e dona de casa, reivindicando igualdade, educação pública, moradia decente e custo de vida suportável. Vi brasileiros das regiões mais pobres, sobretudo os nordestinos, exigindo o fim do escândalo de hegemonias estaduais, pela regionalização inaceitável e concentradora do desenvolvimento. Vi os estudantes, um milhão e quinhentos mil deles universitários, clamando por novos empregos e acesso à educação, numa economia roída pelo câncer de milhões de desempregados, subempregados e de seres em miséria.
Não fosse essa infeliz ideia da "Constituinte", o destaque da reunião de Dilma com governadores e prefeitos teria sido o de classificar a corrupção como crime hediondo, o senhor não acha?
A moral é o cerne da pátria. A corrupção é o cupim da República. República suja pela corrupção impune tomba nas mãos de demagogos que, a pretexto de salvá-la, a tiranizam. Não roubar, não deixar roubar, pôr na cadeia quem roube, eis o primeiro mandamento da moral pública.
Fonte: O Globo
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