Se "tanto os intelectuais como os jornalistas caem, frequentemente, em generalizações grosseiras...", como se lê na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium do papa Francisco, será temerário comentá-la. Mas a tentação é grande.
Façamo-lo, ao risco de interpretação incorreta. Aconselharia, porém, quem se dispusesse a discuti-la que, antes, lesse O Homem que Era Quinta-Feira, de Chesterton, mergulhando no universo místico e misterioso do livro e preparando-se para compreender o objetivo do papa em texto com o qual deseja atingir, antes de quaisquer meios sociais e políticos, o orbe católico. Mas vamos aos fatos, pois, como diz o papa, "é perigoso viver no reino só da palavra (...). A realidade é superior à ideia".
Assinalemos antes que a Exortação Apostólica não se dirige, como uma encíclica, a Urbe et Orbi; volta-se para os católicos. Não é documento doutrinário - insiste em que os pontos básicos da Doutrina não foram alterados nem o serão. Nada impede Francisco de, reiterando posições, apor-lhes seu "distinguo", sempre com ela coerente, porém.
É o caso da crítica ao sistema econômico e financeiro. Ela poderá parecer mais severa que as de João Paulo II e Bento XVI. Compreende-se, porque a realidade se tornou mais dramática, obrigando o Pastor a ser mais agressivo. Francisco reitera: "A posse privada dos bens justifica-se para cuidar deles e aumentá-los de modo a servirem melhor o bem comum, pelo que a solidariedade deve ser vivida como a decisão de devolver ao pobre o que lhe corresponde...". E explica o que seria "solidariedade": "A solidariedade é uma reação espontânea de quem reconhece a função social da propriedade e o destino universal dos bens como realidades anteriores à propriedade privada" (inverti a ordem dessas duas frases). Mas acrescenta: "Penso, aliás, que não se deve esperar do magistério papal uma palavra definitiva ou completa sobre todas as questões que dizem respeito à Igreja e ao mundo".
A Exortação é documento pedagógico, "regras para a direção do espírito" dos padres e dos que pretenderem ser novos missionários, escrito por quem sabe que "a realidade é superior à ideia" e, por isso mesmo, alerta os "capitães" para o perigo de se fecharem aos "soldados" (não nos esqueçamos de que o papa pertence a uma "unidade militar", a Companhia "de Jesus"): "O Bispo (...), na sua missão de promover uma comunhão dinâmica, aberta e missionária, deverá estimular e procurar o amadurecimento(...) de outras formas de diálogo pastoral, com o desejo de ouvir a todos, e não apenas alguns sempre prontos a lisonjeá-lo". Sabe, ao mesmo tempo, que o bispo pode sofrer pressões dos que lhe devem obediência: "Importante é não caminhar sozinho, mas ter sempre em conta os irmãos e, de modo especial, a guia dos Bispos, num discernimento pastoral sábio e realista".
Para os bispos, confirmando a hierarquia, a Exortação é apenas um conselho pastoral; para aqueles a quem é necessário manter na fé ou a ela atrair, uma diretriz de comportamento.
Ao ler a Evangelii Gaudium encontramos não o papa, mas o professor. Que conhece a realidade e os alunos que deve instruir (para que sejam professores). Atentemos para diferentes passagens em que procura mostrar a necessidade de, na tarefa missionária, se evitarem as palavras "eruditas" e se preferir linguagem mais simples: "Uma pastoral em chave missionária não está obcecada pela transmissão desarticulada de uma imensidade de doutrinas que se tentam impor à força de insistir. O anúncio concentra-se no essencial, no que é (...) mais necessário. A proposta acaba simplificada, sem com isso perder profundidade e verdade, e assim se torna mais convincente e radiosa".
A análise crítica vai mais fundo: "Por vezes, mesmo ouvindo uma linguagem totalmente ortodoxa, aquilo que os fiéis recebem, devido à linguagem que eles mesmos utilizam e compreendem, é algo que não corresponde ao verdadeiro Evangelho de Jesus Cristo. Com a santa intenção de lhes comunicar a verdade sobre Deus e o ser humano, nalgumas ocasiões, damos-lhes um falso deus ou um ideal humano que não é verdadeiramente cristão. Deste modo, somos fiéis a uma formulação, mas não transmitimos a substância (...). E a renovação das formas de expressão torna-se necessária para transmitir ao homem de hoje a mensagem evangélica no seu significado imutável".
O papa vê como necessário cuidar das palavras: "Ao mesmo tempo, as enormes e rápidas mudanças culturais exigem que prestemos constante atenção ao tentar exprimir as verdades de sempre numa linguagem que permita reconhecer a sua permanente novidade (...). Por vezes, mesmo ouvindo uma linguagem totalmente ortodoxa, aquilo que os fiéis recebem (...) é algo que não corresponde ao verdadeiro Evangelho de Jesus Cristo (...). Deste modo, somos fiéis a uma formulação, mas não transmitimos a substância (...). E a renovação das formas de expressão torna-se necessária para transmitir ao homem de hoje a mensagem evangélica no seu significado imutável".
A atenção que dedica à homilia está na mesma linha de pensamento e aconselhamento. "Consideremos agora a pregação dentro da Liturgia, que requer uma séria avaliação por parte dos Pastores (...). A homilia é o ponto de comparação para avaliar a proximidade e a capacidade de encontro de um Pastor com o seu povo. De fato, sabemos que os fiéis lhe dão muita importância; e, muitas vezes, tanto eles como os próprios ministros ordenados sofrem: uns a ouvir e os outros a pregar".
E insistirá no que, em certo momento, dividiu os fiéis - a opção pelos pobres. A interpretação do que fosse o "povo de Deus" pôs a Doutrina e o papado em xeque. É assunto que merece atenção.
Professor da USP e da PUC-SP
Fonte: O Estado de S. Paulo
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