sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Debate amarrado – Luiz Carlos Azedo

A criação da Comissão Nacional da Verdade pelo governo brasileiro veio com atraso histórico de quase 30 anos e ameaça concluir os trabalhos contribuindo pouco para diminuir a opacidade sobre o regime militar que perdurou no país entre 1964 e 1985. A comparação com os trabalhos promovidos pelos nossos vizinhos mostra o quanto o colegiado brasileiro jamais encontrou uma linha de trabalho consistente. Pior, deve fechar o serviço dividida durante todo o período de trabalho pela mesma questão: a revisão sobre o alcance da Lei de Anistia a torturadores.

Investigações semelhantes promovidas em países vizinhos, como Chile e Argentina, aumentam ainda mais a frustração com o grupo brasileiro. O país que teve Augusto Pinochet no centro do poder por 17 anos iniciou a atuação ainda durante a agonia do regime, em 1990. As violações de direitos humanos promovidas à sombra do quepe do ex-ditador resultaram em pouco mais de 750 militares em juízo, acusados de torturas e desaparecimentos, além do reconhecimento de pelo menos 40 mil vítimas oficiais da ditadura chilena. Na Argentina, as investigações tiveram início em 1983, com a Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (Conadep). O saldo foi ainda maior do que o chileno. Cerca de 250 militares e civis foram condenados por envolvimento em prisões, torturas, desaparecimentos e mortes.

No Brasil, o primeiro passo real para identificar vítimas da ditadura e repará-las teve início com a edição da Lei dos Mortos e Desaparecidos, em 1995, e a criação da Comissão de Anistia, em 2001 — ambas originadas no governo Fernando Henrique Cardoso. Com a Comissão Nacional da Verdade, iniciada em 16 de maio de 2012, esperava-se ao menos avançar na identificação dos autores e do aparato da tortura montada pelo regime. A revisão da Lei de Anistia estava circunscrita desde o início dos trabalhos, o que, de partida, tornou o trabalho da comissão no mínimo insólito. Com o debate amarrado, o colegiado focou esforços sobre casos emblemáticos e neles pouco ou nada avançou.

A morte dos ex-presidentes Juscelino Kubitschek e João Goulart são dois casos particulares. As circunstâncias do acidente que matou o fundador de Brasília já haviam sido apuradas por mais de uma vez, inclusive pelo Congresso Nacional. Nenhum indício jamais foi encontrado de que ele tenha, de fato, sido vítima de homicídio pela ditadura. Mas eis que a comissão decidiu se enveredar no episódio. No caso de João Goulart, as expectativas sobre a exumação do corpo do ex-presidente também não são melhores, já que o ex-agente do serviço de inteligência do governo uruguaio Mario Neira Barreiro, que supostamente teria participado do planejamento da morte de Jango, afirmou que o veneno utilizado para o assassinato não poderia mais ser detectado, passados mais de 30 anos do caso. Mas ainda há uma pequena esperança.

O principal avanço nas investigações sobre o período militar nos últimos anos acabou vindo não com as investigações da Comissão Nacional da Verdade, mas com a divulgação dos arquivos do coronel da reserva do Exército Julio Miguel Molinas Dias, morto em novembro de 2012, durante uma tentativa de assalto. A documentação desvelada pelo jornal Zero Hora iluminou a prisão do ex-deputado federal Rubens Paiva no Doi-Codi — o que os militares sempre negaram — e explicou como o regime tentou encobrir o atentado fracassado no RioCentro, em 1981. Da Comissão Nacional da Verdade, muito pouco. E deve ficar por isso mesmo.

Torturadores homenageados
Se de início os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade miravam em garantir que crimes contra os diretos humanos não mais se repetissem, a própria impunidade histórica de quem praticou as torturas, chancelada pelo Supremo Tribunal Federal, tornou as investigações cerceadas. Periga os trabalhos da comissão apresentarem como avanço prático a revogação de nomes de ruas, avenidas, praças e cidades. O pior é que, em se tratando de Brasil, isso já seria um começo. Basta constatar que o Senado Federal insiste em manter uma de suas alas batizada com o nome de um notório torturador, colaborador de dois regimes de exceção, diga-se. Projeto aprovado em 2012 abriu brecha para a mudança, que seria avaliada pela Mesa Diretora da Casa. Um ano e meio depois, Filinto Muller ainda permanece digno de homenagens, segundo os senadores.

Fonte: Correio Braziliense

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