segunda-feira, 26 de junho de 2017

A rebeldia suburbana de Lima Barreto

Homenageado na Flip, escritor emerge sempre que o País entra em crises éticas ou institucionais

Autor de 'Triste Fim de Policarpo Quaresma' ganha reedições, biografia e homenagens

Alexandre Rosa*, O Estado de S. Paulo / Aliás, Cultura

A escolha de Lima Barreto (1881-1922) como homenageado na 17.ª edição da Flip vem corroborar a tese segundo a qual o seu nome emerge sempre que o Brasil afunda em crises institucionais, morais, éticas, políticas. Curiosa gangorra. Isso porque, em cenários como este, o componente crítico-social da literatura ganha enorme relevo, bem como sua capacidade de fomentar debates sobre os problemas do país.

Consta na programação da Flip vários títulos a serem lançados: a nova biografia do escritor, preparada por Lilia Schwarcz, Lima Barreto, Triste Visionário (Companhia das Letras, 704 páginas, R$ 69,90); uma reedição de Cemitério dos Vivos e do Diário do Hospício, livros póstumos do autor, organizados, agora, por Augusto Massi, também pela Companhia das Letras; uma edição especial de Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá(1919), programada pela coleção Clássicos Ateliê, são alguns títulos que chegarão às livrarias no segundo semestre do ano.

Vista por alguns como um grande painel autobiográfico e por muitos como testemunho vivo de um período histórico turbulento, a obra de Lima Barreto segue despertando enorme interesse. Sérgio Buarque de Holanda decretou que a admiração por Lima Barreto viria antes de tudo por motivações extraliterárias; a confissão, o inconformismo, a dicção panfletária de sua obra, que não receberam tratamento artístico aprimorado, ficando a meio caminho entre o documental e o desabafo.

O próprio Antonio Candido avaliou com muitas ressalvas a obra de Lima Barreto, tendo-o como um narrador menos realizado Muitos o consideraram um autor um tanto quanto descuidado. Mas, a questão fundamental é: um desleixado sobreviveria tanto tempo a ponto de se tornar canônico?

Francisco de Assis Barbosa, grande biógrafo do escritor, já chamava atenção, em 1952, para a necessidade de se encarar a literatura de Lima Barreto para além do drama íntimo nela incorporado – drama que o perseguiu por toda a vida, fruto do racismo, da pobreza, do uso imoderado do álcool – pois existe, também, uma “filosofia estética” operando em toda produção do autor.

Atualmente, o debate acerca de sua obra parece ter atingido também este patamar: em função de sua militância – estética e política – Lima Barreto profanou o sagrado templo da forma e da linguagem até então sob a custódia dos acadêmicos posteriores a Machado de Assis.

A reação de Lima contra o academicismo ornamental em nossas letras se deu através da constatação sobre a articulação entre literatura, o gosto duvidoso das elites da época e a ideologia que as sustentavam; um bloqueio estético-ideológico, em que as instâncias de poder se entrosavam numa harmoniosa celebração na República das Letras, cujo desdobramento prático eram as reuniões na ABL, os saraus literários em Botafogo, o mundanismo das crônicas sociais de João do Rio e Figueiredo Pimentel; a literatura havia se tornado o “sorriso da sociedade”, num país recém-saído da escravatura.

Um dos melhores resultados deste novo debate sobre a obra barretiana é o recente livro Belle Époque: Crítica, Arte e Cultura (Editora Intermeios, 383 pág., R$ 58), organizado por Carmem Negreiros, Fátima Oliveira e Rosa Gens, que traz o importante “Dossiê Lima Barreto”, com ensaios de diversos especialistas sobre o autor.

Como jornalista, Lima Barreto combateu os desmandos do governo, a corrupção dos políticos, o descaso para com os pobres, a truculência policial. Mas havia, também, o Lima Barreto escritor, esteta, preocupado em arrancar a Musa do sagrado altar e colocá-la para andar de bonde, visitar os subúrbios, conhecer a gente pobre.

Evidente que pagou caro por tamanha ousadia. Poucas obras no Brasil expressam de maneira tão gritante a angústia formal que atormenta os escritores dispostos a romper com a tradição, quando esta deixa de ser a expressão viva de uma realidade e passa a referendar um estado de coisas que precisa urgentemente ser mudado. Com Lima Barreto, nosso realismo se tornou mais democrático.
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*Alexandre Rosa é escritor, educador, pesquisador da obra de Lima Barreto e mestre em Literatura Brasileira pelo IEB/SP

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