sábado, 3 de março de 2018

A reconstrução do Brasil: Editorial | O Estado de S. Paulo

A Constituição de 1988 tem 250 artigos e já sofreu 99 emendas. Por sua vez, a Constituição dos EUA, que tem 7 artigos, recebeu apenas 27 emendas ao longo de 230 anos. A comparação foi feita pelo ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e professor de Direito da USP Eros Grau, durante o primeiro Fórum Estadão – A Reconstrução do Brasil. Também participaram do debate sobre a Constituição o professor de Direito da FGV-RJ Joaquim Falcão e o ex-presidente do STF Nelson Jobim.

No debate, foram discutidas algumas consequências da excessiva amplidão da Constituição de 1988. Como exemplo, Joaquim Falcão mencionou o fato de a Carta Magna ter 32 artigos relativos ao funcionalismo público e apenas 1 referente ao trabalhador privado. Com isso, o funcionário público tem 16 vezes mais chances de levar suas demandas para julgamento pelo STF em comparação com o trabalhador do setor privado. “Os funcionários públicos constitucionalizaram todas as suas pretensões durante a Constituinte”, disse Falcão.

“Precisamos fazer uma lipoaspiração na Constituição”, disse Jobim. Para ele, o excesso de regras constitucionais dificulta a governabilidade, alimentando o presidencialismo de coalizão, que torna o Poder Executivo refém do Congresso e abre caminho para a corrupção. Sendo a Constituição muito ampla, com frequência o governo precisa fazer emendas constitucionais, o que requer maioria de três quintos no Congresso.

Nelson Jobim lembrou que as dificuldades para compor a maioria durante a Assembleia Constituinte levaram à redação ambígua de muitos artigos, já que assim era mais fácil obter a sua aprovação. No entanto, essa solução, que apenas adiou o problema, foi ocasião para que o Judiciário fizesse interpretações muito além do conteúdo aprovado em 1988.

O debate possibilitou evidenciar, uma vez mais, que os principais problemas da Constituição de 1988 não são decorrência apenas das deficiências do seu texto. Eles deixaram claro que o Poder Judiciário vem aplicando mal a Constituição, com criações interpretativas que não têm fundamento no texto votado pela Constituinte.

Joaquim Falcão lembrou que o cumprimento da Carta Magna é tarefa dos Três Poderes, não apenas do Judiciário. “O poder moderador não é o Supremo”, disse. “O Legislativo interpreta a Constituição para fazer suas leis e o Executivo interpreta a Constituição ao regulá-la através das agências. A Constituição é sua aplicação.” Ou seja, o STF não é o proprietário da Constituição.

Eros Grau avaliou que “o STF se transformou num grande espetáculo televisivo”, em contraste com o que se vê em outros países. O professor do Largo São Francisco citou como exemplo a França, onde os integrantes da Corte constitucional não desfrutam de qualquer protagonismo perante a opinião pública.

“O Supremo tem que ser um órgão plenário, e não um órgão de soma de vontades e conflitos individuais, como está acontecendo”, disse Nelson Jobim. Ele defendeu que o Judiciário deve apenas aplicar a lei. “Ele não pode ser o elemento arbitrador dos interesses da sociedade”, afirmou.

Como comentou Joaquim Falcão, integrantes do Supremo têm desrespeitado o processo decisório, descumprindo, por exemplo, o prazo para a devolução das vistas de um processo. Tais descuidos procedimentais têm graves consequências. Com isso, decisões liminares, que são monocráticas, ganham uma perenidade que não deveriam ter, aumentando, fora da lei, o poder discricionário de cada ministro. É o caso das liminares do ministro Luiz Fux concedendo auxílio-moradia a juízes e procuradores. Poucas vezes se viu tamanho prejuízo aos cofres públicos por força de uma única canetada. A atuação de integrantes do STF fora dos cânones regimentais, tardando o fim do processo, também alimenta a imprevisibilidade. O Supremo, que deveria ser a segurança da lei, passa a ser, assim, causa de insegurança jurídica.

As quase três décadas da Constituição de 1988 devem ser ocasião para uma reflexão madura sobre a sua aplicação, pondo freio às aventuras realizadas em seu nome. Por ser fundamento do Estado Democrático de Direito, ela impõe que o poder estatal seja sempre exercido com responsabilidade e controle. É, por isso, que a última palavra deve ser sempre dela.

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