- Valor Econômico (18/6/2019)
"Tem que ter noção de consequência", alerta Santos Cruz
Cinco dias após deixar o governo, o general de divisão Carlos Alberto dos Santos Cruz mantém a agenda cheia. É palestrante convidado do congresso da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) no dia 27. Nos dias 10 e 11 de julho, participa de evento sobre missões de paz na sede das Organizações das Nações Unidas (ONU) em Nova York.
Dispensado pelo presidente Jair Bolsonaro na última quinta-feira, após sucessivos ataques do escritor Olavo de Carvalho e de seus sequazes, Santos Cruz é um quadro concorrido na esfera internacional: depois de chefiar as missões de paz no Haiti (de 2007 a 2009) e no Congo (de 2013 a 2015), tornou-se consultor da ONU. Fluente em inglês, francês e espanhol, e conhecedor de russo, proferiu cursos e palestras em dezenas de países. Quando foi convidado para ser ministro, estava em Bangladesh, ministrando um curso para comandantes militares.
Apesar do bombardeio do grupo de Olavo, Santos Cruz nega que tenha sido uma "guerra" trabalhar no governo. "A política tem uma conotação às vezes não muito boa, mas eu não saio desiludido com a política", disse à coluna. "Encontrei muitas pessoas boas interessadas em trabalhar. A política é um jogo de interesses, mas não precisa ser desonesto por causa disso".
Questionado sobre o motivo de sua saída da Secretaria de Governo, ele pondera que só o presidente da República tem a resposta. Para interlocutores de Bolsonaro, Santos Cruz teria adotado uma postura de intransigência à frente do ministério, como se tentasse aplicar à política a rigidez de um quartel. O general refuta essa versão. Forjado no ambiente de diplomacia e política da ONU, ele tem perfil conciliatório. Mas não transige se o impasse implica renúncia a suas convicções, ou dispor irresponsavelmente do dinheiro público.
Questionado se foi compelido a aplicar irresponsavelmente os recursos públicos da Secretaria de Comunicação, como chegou a ser divulgado, ele nega com veemência. Declara estar com a consciência tranquila. "É fácil ficar quieto, não falar nada, ver um monte de absurdo e continuar na função", afirma.
"Não sou agarrado em questão funcional, o que vale é a consciência estar em paz, o que está errado dizer que está errado, com educação, com jeito". Reforça que não negocia princípios: "Mostrar a consequência das coisas, tem que ter noção de consequência". Indagado sobre o que estava errado, o ex-ministro explica que a informação foi levada ao presidente.
Abatido pelo pelotão de fuzilamento do grupo de Olavo, Santos Cruz combateu no front, sob fogo cerrado de artilharia pesada no Haiti e no Congo. Na África, liderou um contingente de 21 mil homens - o maior exército de missões de paz da ONU em todo o mundo.
Em 2013, após meio século de missões de paz, o conflito na República Democrática do Congo se tornou insustentável. Os habitantes da província de Goma - metrópole com mais de 1 milhão de habitantes, na fronteira com Ruanda e Uganda - viram-se encurralados pelas forças rebeldes que ocuparam as colinas do entorno da cidade e bloquearam a entrada de alimentos, lenha e carvão.
Diante desse quadro, o Conselho de Segurança da ONU decidiu requisitar o general Santos Cruz para assumir o comando da missão. A abertura do cerco de Goma, chefiada por ele, entrou para a história das Nações Unidas: foi a primeira vez que o exército do Congo venceu uma ofensiva contra os rebeldes, com o amparo da brigada de intervenção da ONU.
Como Santos Cruz estava na reserva, o Exército brasileiro teve de designá-lo para a ativa, a fim de que ele assumisse a missão. Ele foi escolhido pela ação de força emblemática no Haiti, quando comandou as tropas da ONU contra as organizações criminosas que ocupavam o bairro de Cité Soleil, em Porto Príncipe.
No Congo, os episódios de conflito remontam ao genocídio de 800 mil pessoas em Ruanda, em 1994: durante cem dias, entre abril e junho, uma maioria de hutus assassinou os tutsis. O estopim foi a explosão do avião que transportava o presidente Juvenal Habyarimana, um hutu.
Na esteira do confronto, milhões de hutus e tutsis fugiram para o Congo. Os refugiados formaram máfias, que passaram a controlar o contrabando de ouro, madeira e coltan: matéria-prima para a fabricação de smartphones, tablets e videogames. O Congo possui 65% do coltan de todo o mundo.
A guerra civil ganhou proporções incontornáveis a partir de 2012, quando refugiados tutsis, que haviam sido incorporados ao exército do Congo, deixaram as forças armadas para se reunir no movimento rebelde M-23. O grupo ocupou Goma e interditou o acesso à cidade. Na ocasião, a ONU não contra-atacou, porque não tinha licença do Conselho de Segurança. Mas a omissão dos "capacetes azuis" revoltou a população, que revidou queimando carros da ONU em todo o país.
Enquanto a ONU comandava conversações de paz com o M-23 em Uganda, Santos Cruz obteve mandato para atacar com uma "brigada de intervenção", formada por mais de 3 mil soldados dos exércitos da Tanzânia, África do Sul e Malawi.
A batalha da abertura do cerco de Goma durou oito dias, sob a chuva de 5 mil granadas de artilharia, morteiros, foguetes. Houve uma parada no quinto dia para reajuste de manobras, mas sem um cessar-fogo. "Foram seis dias de alta intensidade, e dois de fogos de inquietação", descreveu. Ao fim, os rebeldes tiveram de recuar mais de 20 quilômetros. Uma distância necessária, porque dispunham de artilharia com 18 quilômetros de alcance.
No Congo, Santos Cruz não foi atingido nem de raspão. Quatro anos depois de escapar ileso do front, acabou abatido no front da política por fogo amigo - se é que se pode chamar de "amigo" as forças lideradas pelo guru da família Bolsonaro, Olavo de Carvalho.
O general resistiu ao tiroteio, deflagrado há dois meses com os ataques ostensivos nas redes sociais. Depois veio o aparente cessar-fogo, mas não era uma trégua. Eram os "fogos de inquietação", que ocorrem quando, no campo de batalha, os tiros refluem, mas não acabam. Depois da aparente calmaria, ressurgiram com força redobrada e abateram o soldado.
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