Se
algo novo vier, seu sucesso dependerá de entender que houve uma mudança no
clima político do país
O
jogo político presidencial começou com as eleições de 2020, seja por causa da
ascensão de uma nova agenda, seja por suas consequências, pois os atores
políticos não serão mais os mesmos na segunda parte do mandato do presidente
Bolsonaro, incluindo o próprio. Mas ainda falta definir os jogadores e as
táticas que vão vigorar no campeonato nacional do sistema político. Por ora,
não dá para saber quem estará efetivamente em campo, nem quem vai liderar e
chegar ao segundo turno. Muita coisa pode acontecer. De todo modo, alguns
sinais foram dados e quem souber interpretá-los melhor terá vantagens na
próxima disputa.
As
eleições municipais deixaram, basicamente, três legados que vão influenciar os
próximos dois anos da política brasileira, com possíveis impactos sobre a
disputa presidencial. O primeiro legado é o mais importante: houve uma mudança
no clima de opinião. O humor político que se iniciou em 2016 e teve seu auge em
2018, baseado na visão antipolítica, na proeminência da luta contra a corrupção
e no discurso bélico como forma de garantir a segurança pública, perdeu a
hegemonia no discurso dos políticos e a efetividade para conseguir votos em
2020.
Em substituição a esse clima de opinião, surgiram pelo menos três grandes referências que ganharam força agora e têm tudo para se estabelecer como tendências majoritárias no caminho para o pleito presidencial. A primeira é uma aversão ao bolsonarismo como forma extremista de se fazer política em todas as suas dimensões; a segunda é a ascensão da questão social como a dominante na agenda pública; e a terceira é a volta da política como algo positivo e necessário para articular grupos, interesses e valores.
Os
eleitores demonstraram cansaço do modelo bolsonarista, com seu negacionismo em
relação à ciência, sua forma de comunicação baseada em fake news e na
polarização, sua lógica de só reclamar dos outros e não apresentar soluções. O
clima de ódio como instrumento eleitoral não só perdeu força, como tendeu a ser
rechaçado. Esse modelo que Bolsonaro abraçou, ademais, tende a ser bombardeado
pelas mudanças no cenário internacional. Será muito difícil ser trumpista em
2022 e ganhar as eleições.
A
tendência política mais importante que emergiu das eleições de 2020 é a
ascensão da questão social ao centro da agenda política, que dominou a campanha
dos vencedores - os de esquerda, os de centro e os de centro-direita. A
pandemia foi fundamental neste processo, ao escancarar uma desigualdade imensa,
aumentando a consciência do país sobre a centralidade desse tema. Mas a longa
estagnação econômica e a organização da sociedade contra os diversos tipos de
injustiça também têm um papel relevante na mudança do humor político.
Como
não deve haver um crescimento econômico relevante até a eleição presidencial,
mantendo-se provavelmente um desemprego alto, o presidente Bolsonaro ficará
marcado pela pauperização da população. A emergência da questão social vem,
ainda, da eclosão de episódios como os de George Floyd e do assassinato de João
Alberto, que modificaram a percepção da temática racial não só de forma difusa,
mas também nas elites sociais. E outras manifestações da desigualdade, como a educacional
e a de gênero, vão ser cada vez mais abordadas até 2022. E Bolsonaro não se
preparou para essa mudança no clima político - na verdade, ele tem uma noção
preconceituosa das origens e formas de propagação da desigualdade, como revelam
seus vários discursos ao longo da vida.
A
transformação do clima de opinião completa-se com a recuperação da política
como forma de juntar grupos partidários e sociais em torno de compromissos com
a coletividade. Esse ponto se coloca como antípoda da polarização e do ódio
entre adversários. É bem provável que a arte do diálogo e, sobretudo, a
capacidade de articular os diferentes ganhem força nos próximos dois anos, de
tal modo que não se sabe se haverá uma frente ampla ou “frentes progressistas”
e de centro contra o bolsonarismo, porém, é nítido que o candidato que
conseguir convencer a sociedade que ele representa múltiplos atores e expressar
isso no universo de seus apoiadores terá mais chances de vencer a disputa
presidencial.
A
recuperação da política também envolve construir propostas e candidaturas mais
orgânicas com setores sociais e grupos técnicos. A ideia do “salvador da
pátria” que tem um “posto Ipiranga” não se sustenta mais, particularmente
porque ela não é capaz de dar conta dos problemas do país. As pessoas querem
soluções práticas para suas vidas, o que envolve conversas com a sociedade e
políticas públicas bem definidas.
Bolsonaro
representa o contrário dessa tendência de dar maior organicidade à política. De
um lado, ele reduziu a participação social institucionalizada e retirou o papel
da Presidência da República de ser uma mesa de diálogo e negociação com os
diversos grupos (como FHC e Lula faziam). De outro, houve um enfraquecimento da
profissionalização das políticas públicas, seja com a escolha de gente
desconhecida e amadora para comandar os setores, seja com o desprezo das
evidências cientificas como bússola das decisões governamentais.
A
mudança no clima de opinião é o principal legado de 2020 para 2022. No entanto,
há outros dois efeitos da eleição municipal que deverão ter um impacto também
relevante. Um é o fracasso do bolsonarismo em seu formato atual. A maioria dos
candidatos que o presidente apoiou acabou perdendo a disputa, não porque ele
seja um pé-frio, mas porque a sua proposta de governo não entregou o que havia
prometido e não dá conta dos desafios surgidos no meio do caminho. Ou Bolsonaro
muda o seu estilo de governança, colocando as políticas públicas na frente da
ideologia, ou então seus próximos dois anos serão muito difíceis, comprometendo
a reeleição.
O
terceiro e último legado da eleição municipal é a consolidação do isolamento
petista. Mais do que uma derrota, o que 2020 revelou é a impossibilidade de o
PT ter a mesma hegemonia na esquerda e na sociedade que teve por mais de dez
anos. Se Lula conseguir se viabilizar juridicamente como um candidato
presidencial, ele ainda terá uma força não desprezível, que pode ficar entre
20% e 30% dos votos. E se o percentual alcançado levar o Partido dos
Trabalhadores ao segundo turno, o resto já se sabe: será muito difícil juntar
outros para esse projeto político.
Uma
saída para o PT seria abdicar, pelo menos por ora, de seu papel hegemônico,
procurando construir uma aliança mais ampla. Será que o partido está preparado
para isso? Ou melhor, será que Lula, um dos maiores líderes populares da
história do país, conseguiria vestir esse figurino? Tal qual foi dito para o
caso de Bolsonaro, fica ao petismo o desafio: é mudar ou caminhar para o
fracasso em 2022.
Terminada
a contagem dos votos, já se quer saber quem será o favorito para 2022 e com
quem ele estará aliado. Eis aqui algo que está muito longe de ser definido. Há
muito jogo pela frente, com quatro grandes incógnitas. A primeira diz respeito
ao desempenho dos governantes nos próximos dois anos. É provável que a segunda
parte do mandato de Bolsonaro seja bem mais difícil do que a primeira, com
impactos sobre sua popularidade. Mas os outros possíveis concorrentes também
apoiam governos no plano subnacional. Doria, por exemplo, tem baixíssimas taxas
de aprovação em seu Estado, e é muito cedo para saber se será capaz de mudar
esse cenário. Os partidos de centro e centro-direita, os que mais cresceram nas
eleições municipais, agora terão a responsabilidade de fornecer soluções à
população. Se fracassarem, o povo pode procurar outras alternativas.
De
todo modo, o jogo dos governos, nacional e subnacionais, ainda está sendo
jogado. Todos os principais partidos e a maioria dos presidenciáveis têm uma
vitrine para ser responsabilizada pelos eleitores. Neste sentido, o desempenho
das políticas públicas até 2022 vai ser um elemento importante de comparação na
definição do voto.
Uma
segunda incógnita, e das bem grandes, relaciona-se às alianças entre os
partidos. Haverá muita conversa, mas o destino das legendas e de possíveis
parcerias só serão definidos mais para o final de 2021, porque os partidos vão
esperar até o último minuto para escolher seu caminho, especialmente aqueles
que provavelmente não tenham candidato presidencial, mas que serão peças
centrais na eleição em termos de vice e, sobretudo, de arranjos para as
governadorias e Congresso Nacional.
Um
terceiro ponto diz respeito ao papel das principais lideranças políticas.
Bolsonaro, Ciro, Doria, Huck e Lula, além dos líderes dos partidos do centro
que provavelmente não terão a cabeça da chapa (como ACM Neto e Kassab), serão
decisivos. O quanto serão capazes de ultrapassar o seu próprio autointeresse e
enxergar um caminho coletivo melhor? Eis a pergunta de um milhão de dólares.
Por
fim, muitos fatos e novidades podem mudar o rumo da política nacional. Quem
diria que uma pandemia marcaria o mandato de Bolsonaro? Será que não há algum
presidenciável que não estamos prestando atenção? Seria ele o prefeito Kalil ou
um líder carismático em gestação? O imponderável existe na política e não
podemos ignorar os caprichos do destino. Mas se algo novo vier, seu sucesso
dependerá de entender que houve uma mudança no clima político do país.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
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