Seguindo
essa toada, o Brasil aprofundará a sua crise e passará por uma longa travessia
de pelo menos dois anos
O
Brasil está à deriva e deverá passar por uma longa travessia até o fim do
governo Bolsonaro, com provável piora de sua situação. Dois fatos levam a esta
constatação. De um lado, a crise já era grave em 2018 e aprofundou-se nos
últimos dois anos, numa proporção gigantesca. O país precisaria mudar muitas
coisas, algo que só é possível com um diagnóstico preciso dos problemas,
trabalho árduo de equipes bem preparadas e muito diálogo político e social. E
aqui entra o outro lado do cenário atual: o presidente não está preparado para
combinar essas qualidades. O pior é que praticamente não há chance de ele
modificar seu estilo de governar.
Esmiuçando
melhor este diagnóstico geral, cabe inicialmente mostrar o tamanho do buraco em
que o país está. Há uma combinação de crise sanitária, estagnação econômica,
aumento da desigualdade social, redução da legitimidade dos políticos junto aos
cidadãos e uma piora gigantesca de políticas públicas essenciais. Parte desse
processo foi uma herança deixada para o atual governo. Todavia, Bolsonaro não
só não conseguiu avançar no combate desses problemas, como piorou a situação
geral e trouxe novas dificuldades. Por este caminho, o Brasil estará pior daqui
a dois anos, no fim de seu mandato.
A afirmação de que a manutenção do modelo bolsonarista empurrará todos ladeira abaixo precisa de melhor qualificação. Vamos aos fatos. Primeiro, Bolsonaro foi uma tragédia no combate à pandemia. Isso pode ser constatado pelo número absurdo de casos e mortes, inclusive em perspectiva comparada, bem como pelas medidas preconizadas e pelas lacunas governamentais. Nenhum governante mundial foi tão contundente na defesa do negacionismo. A vacinação demorará para ter impacto no Brasil e os próximos meses deverão de ser de crescimento da covid-19. Casos trágicos como o de Manaus poderão se repetir.
A
situação econômica ainda pode ter uma chance de melhorar, especialmente no ano
que vem. Menos pelo que o país tem feito e mais pelas políticas expansionistas
que os Estados Unidos e a China deverão adotar. Eis aí uma notícia auspiciosa.
Não obstante, o Brasil poderá aproveitar bem menos essa bonança, porque não há
grandes perspectivas de melhora, até 2022, da produtividade, da taxa de
investimento e do consumo da população.
Não
me parece que o governo será capaz de fazer uma mudança fiscal mais ampla do
que o atual feijão com arroz que o teto de gastos gera. O ministro Paulo Guedes
tem enviado uma série de propostas ao Congresso, mas poucas são aprovadas.
Geralmente, a última metade do mandato não é o melhor momento para dar uma
arrancada em reformas estruturais, especialmente porque Bolsonaro tem mais
apetite por outros tipos de mudança legislativa, como a ampliação do uso de
armas pela população e o Estatuto da Família. Esta é a agenda para a qual usará
sua influência política, com muitos cargos e verbas ao Centrão.
Para
completar esse panorama econômico, o desemprego tende a continuar alto, talvez
com algum alento no mercado informal, que gera menos renda. Parte dos ganhos do
país virá da exportação de commodities, como tem ocorrido há 20 anos. Mas,
diferentemente de outros momentos do passado, como no Plano Real e no governo
Lula, definitivamente não somos a bola da vez para os investidores
internacionais. Alguma coisa pode vir das concessões em infraestrutura. Só que
a imagem internacional do Brasil sob Bolsonaro atrapalha esse movimento. Os
erros em políticas ambientais e de direitos humanos, bem como o isolacionismo
diplomático, vão custar caro.
A
crise social tende a aumentar nos próximos dois anos. O auxílio emergencial foi
uma tábua de salvação inventada pelo Congresso que caiu no colo de Bolsonaro.
Terminado o Orçamento de Guerra, caberia ao governo federal pensar em uma
estratégia mais ampla de combate à desigualdade social. Pelo tipo de pensamento
mágico que orienta a cabeça do presidente, não há perspectiva de se ter um plano
estruturado para as políticas sociais. O aumento da desigualdade nos principais
centros urbanos vai criar um cenário distópico, típico de filmes como “Mad
Max”.
Políticas
públicas essenciais para o país também estão à deriva. O MEC vive seu pior
momento em 30 anos e a abstenção recorde no Enem revela uma política
educacional trágica, que vai aumentar a desigualdade entre os alunos. O
Ministério do Meio Ambiente é contrário à política ambiental. Com o atual
titular, não há chances de melhora, até porque o bolsonarismo prometeu a
madeireiros e garimpeiros que eles teriam tudo aquilo que os “ecologistas”
tiraram deles nas últimas décadas. Sobre a política indigenista é melhor não
comentar. Marechal Rondon deve estar se remexendo no túmulo.
No
plano político, duas trajetórias suicidas foram traçadas. No âmbito externo, a
política internacional levou o Brasil a um isolacionismo inédito,
particularmente depois da vitória de Joe Biden nos Estados Unidos. Quem são
nossos aliados? De um modo ou de outro, China, União Europeia, os vizinhos
latino-americanos e agora os EUA, no mínimo, desconfiam do governo brasileiro
e, na pior das hipóteses, mantida a lógica bolsonarista, vão certamente nos
retaliar.
Desde
o fim da ditadura militar, nunca um presidente ameaçou tanto a democracia como
Bolsonaro. Num dia, propõe o voto impresso para tumultuar o jogo político e
acusar os outros de fraude, já preparando um possível golpe caso perca a
eleição. Noutro, diz que as Forças Armadas são o alicerce do regime
democrático, quando qualquer manual de ciência política diria que o povo e as
instituições é que dão legitimidade à ação dos militares, e não o contrário. O
bolsonarismo não acredita nos valores básicos democráticos, como o pluralismo,
a crença nas regras do jogo e os freios e contrapesos entre os poderes. Em seu
comportamento mais benigno, Bolsonaro aceita o apoio de políticos medíocres que
se deixam comprar por cargos e verbas, contanto que eles não interrompam sua
estratégia autoritária mais profunda.
A
rota do bolsonarismo pode ser interrompida, com o presidente mudando seu estilo
de governar, diriam alguns. Os mesmos que acreditaram que Paulo Guedes faria
privatizações em massa e reformas profundas no Estado; que Sergio Moro seria o
guardião do republicanismo de todos, inclusive da família Bolsonaro; que o
general Santos Cruz garantiria uma participação parcimoniosa das Forças Armadas
no poder, que nunca aceitariam obedecer ordens absurdas como receitar
cloroquina em massa para uma população que nem oxigênio tinha; e, como última
esperança dos ingênuos, que o Centrão evitaria que o presidente trilhasse por
caminhos autoritários. Sinto informar: a era da esperança pela mudança da
natureza do bolsonarismo acabou.
O
núcleo duro das crenças de Bolsonaro o leva a preferir a guerra cultural, uma
política populista e autoritária, como também ser mais fiel ao seu eleitorado
mais radical. Na linha contrária, ele não vai optar claramente por políticas
públicas baseadas em evidências e na opinião dos especialistas, nem por um
estilo político baseado no diálogo e na moderação. Crises políticas maiores
podem resultar em concessões e alguns recuos, como aconteceu em junho do ano
passado, após a prisão de Fabrício Queiroz. Mas quanto mais as eleições
presidenciais se aproximam, mais o presidente acredita que precisa manter a
aliança com seus alicerces básicos, em termos de ideias, grupos políticos e
modos de atuação.
Em
outras palavras, o roteiro básico daqui para frente tende a ser de poucas
reformas profundas - se houver alguma -, conflito constante com os possíveis
adversários políticos, inclusive fortalecendo o gabinete do ódio, discursos e
propostas moralistas para agradar ao eleitorado conservador e, sobretudo,
ameaçar a todos que o criticarem. É possível que haja algum populismo fiscal para
distribuir alguma renda aos mais pobres e obras para o clientelismo do Centrão,
mas o essencial para Bolsonaro é montar um exército de apoiadores entre
trabalhadores informais, policiais militares, evangélicos e milicianos puros,
sempre dizendo que as Forças Armadas estarão com ele em qualquer situação.
Seguindo
essa toada, o Brasil aprofundará a sua crise e passará por uma longa travessia
de pelo menos dois anos. O momento é similar ao do governo Figueiredo, quando o
projeto dos militares já tinha fracassado, porém as forças em prol da
democracia não tinham força suficiente para mudar a lógica do poder. Foi nesse
momento, em 1981, que Ignácio de Loyola Brandão escreveu o livro “Não Verás
País Nenhum”, uma ficção distópica que caracterizava o Brasil como um país
marcado pelo autoritarismo, pela tragédia ambiental e pauperização da
população, tudo isso ambientado numa São Paulo caótica. Nada mais atual do que
essa história.
O
Brasil sofreu muito, inclusive com atentados terroristas de milicianos
incrustados no Estado autoritário, mas superou aquele momento autoritário. Para
isso, precisou da aliança de muita gente diferente, como mostram as fotos dos
comícios das Diretas-Já, com Montoro, Lula, FHC, Brizola e Ulysses abraçados e
unindo-se pela mudança. O país provavelmente terá de fazer isso daqui a dois
anos, embora possa fazê-lo agora em nome de um impeachment que tem razões de
sobra para ocorrer, em especial a garantia da sobrevivência do país.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas
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