sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

Aras contraria função constitucional do MP durante a pandemia – O Globo / Opinião

Procurador-geral lava as mãos diante da leniência de autoridades e ainda faz alerta antidemocrático

É no mínimo espantosa a nota divulgada pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, sugerindo que o presidente Jair Bolsonaro poderia decretar o estado de defesa, já que o decreto legislativo de 20 de março de 2020 reconheceu, em virtude da pandemia, estado de calamidade pública no Brasil. Esta seria, para ele, uma “antessala” do estado de defesa, que autoriza supressão de direitos. Os constituintes que deram poderes ao Ministério Público na Carta de 1988, para que de forma independente representasse os interesses da sociedade, jamais imaginariam que um dia o procurador-geral da República pudesse fazer ameaças antidemocráticas.

Aras afirmou ainda que “eventuais ilícitos que importem em responsabilidade de agentes públicos da cúpula dos poderes da República são da competência do Legislativo”. É verdade que cabe ao Congresso abrir processos de impeachment, em caso de crimes de responsabilidade. Mas Aras ignora de modo flagrante um papel cardeal da PGR: investigar e denunciar crimes comuns cometidos pelo Executivo.

Em resposta a Aras, seis dos dez subprocuradores que compõem o Conselho Superior do Ministério Público Federal emitiram nota afirmando que o procurador-geral é obrigado a denunciar autoridades do Executivo com base na Constituição. Exemplo recente foram as duas denúncias do ex-procurador-geral Rodrigo Janot contra o presidente Michel Temer, depois rejeitadas pela Câmara. Os procuradores lembraram o óbvio: “O Ministério Público Federal e, em particular, o procurador-geral da República, precisa cumprir seu papel na defesa da ordem jurídica, do regime democrático e de titular da persecução penal, devendo adotar as necessárias medidas investigativas”.

É simplesmente inadmissível que Aras flerte de modo tão explícito com o golpismo que emana do bolsonarismo. Seu alerta, é bom lembrar, foi feito logo depois de Bolsonaro afirmar que as Forças Armadas é que decidem se haverá democracia ou ditadura, uma aberração inconstitucional

As instituições não podem ficar impassíveis diante da tragédia das mortes por asfixia de vítimas da Covid-19 em Manaus, por incúria do Ministério da Saúde, sob influência direta do negacionismo do presidente Bolsonaro e inépcia de seu ministro da saúde, general Eduardo Pazuello.

A crise sanitária fora de controle tende a aumentar a tensão na sociedade, desprotegida pela falta de vacinas. Novamente por imprevidência do governo Bolsonaro, militante antivacina, e pela diplomacia que segue dogmas ideológicos e não o interesse nacional. Uma hora a pandemia vai acabar. Mas seus efeitos nefastos permanecerão por muito tempo. Responsabilidades por esse descalabro precisarão ser esclarecidas.

Em vez de sugerir a descabida decretação de estado de defesa, o procurador-geral deveria era investigar a negligência de autoridades que faz do Brasil um pária internacional e transforma o país num profícuo produtor de cadáveres.

Governo prometeu demais e fracassou na hora de entregar as vacinas – O Globo / Opinião

Falta de doses resulta de erros no planejamento, incompetência da diplomacia e hesitação de institutos na hora de investir

Em 6 de janeiro, às vésperas de o Brasil alcançar a marca fatídica de 200 mil mortos pelo novo coronavírus, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, disse num pronunciamento em rede nacional que o país tinha asseguradas 354 milhões de doses de vacina contra a Covid-19. Balela. No mundo real, dispõe de 6 milhões de doses de vacina — no singular mesmo, pois é só uma, a CoronaVac, da chinesa Sinovac, produzida em parceria com o Butantan. Mais 4 milhões de doses da CoronaVac que foram envasadas no Brasil e aguardam aprovação da Anvisa (a palavra-chave aí é “envasadas”). E a promessa de que hoje chegue enfim o lote de 2 milhões de doses, comprado meio no improviso do Instituto Serum, da Índia, para dar início à campanha nacional de imunização. Ao todo, pouco mais de 3% do que foi anunciado por Pazuello.

E onde está o resto? Ninguém sabe, ninguém viu. Bolsonaro desde o início desdenhou as vacinas, sobretudo a “vacina chinesa”, que atribuiu a seu rival João Doria. A produção da vacina de Oxford pela Fiocruz ainda é uma incógnita. A parceria foi firmada no último dia 31 de julho, prevendo 100 milhões de doses no primeiro semestre de 2021. Até agora, o Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA), matéria-prima para a fabricação, não chegou da China. Na terça-feira, a Fiocruz informou que, devido ao atraso, só poderá entregar as doses a partir de março. O Butantan também aguarda a chegada do IFA da China para produzir mais doses, e o atraso na vinda da matéria-prima já causa preocupação.

A situação resulta de uma série de erros do governo. A começar pela descrença de Bolsonaro nas vacinas — ele sempre sabotou a vacinação, dizendo até que não se vacinaria. A falta de planejamento resultou na aposta em poucos fabricantes, graças a iniciativas isoladas. A diplomacia brasileira tem sido de uma incompetência flagrante diante da China e da Índia, bases da produção.

Finalmente, os institutos brasileiros hesitaram e foram incapazes de investir a tempo para trazer ao país a produção dos insumos (já que ambos os acordos supõem transferência de tecnologia). Tal atitude é reflexo de uma legislação atrasada, que desincentiva gestores públicos a fazer investimentos de risco, pois sempre são penalizados em meio às exigências de uma burocracia irracional, que pune o menor desvio e jamais premia o sucesso.

Enquanto mais de 50 países já vacinam suas populações, no Brasil a imunização patina pela falta de vacinas e, ainda por cima, está sujeita a fraudes. Criou-se uma expectativa que será frustrada a qualquer momento, quando as doses acabarem. Que campanha de vacinação é essa?

Pedidos de impeachment – O Estado de S. Paulo / Opinião

Existem 56 pedidos de impeachment de Jair Bolsonaro. O País não pode ficar refém de alguém que despreza a vida da população.

Em geral, grandes adversidades oferecem aos governantes a oportunidade de exercer uma liderança que, em tempos normais, dificilmente ocorreria. Não é preciso realizar feitos extraordinários. Muitas vezes um comportamento mediano é capaz de assegurar, numa grande crise, novo patamar de reconhecimento a muitos governantes. Jair Bolsonaro, no entanto, conseguiu o exato oposto.

Em vez de representar uma oportunidade de aplainar resistências e consolidar uma natural liderança – afinal, vigora no País o regime presidencialista –, a pandemia do novo coronavírus significou, para Jair Bolsonaro, uma multiplicação do número de pedidos de impeachment.

Desde 2019, 61 denúncias contra Jair Bolsonaro a respeito de crimes de responsabilidade foram protocoladas na Câmara dos Deputados. Desse total, 54 foram apresentadas depois de março de 2020, quando começou a pandemia no País.

No futuro, historiadores vão querer estudar e entender como o presidente Jair Bolsonaro realizou esse feito. O fato é que ele conseguiu. No meio de uma pandemia, com inúmeras preocupações e desafios a serem enfrentados, cidadãos das mais diversas orientações políticas e ideológicas, bem como partidos e entidades, viram-se na obrigação de denunciar o presidente da República por crime de responsabilidade.

Em tese, o impeachment deveria ser a última coisa a se pensar numa pandemia. Com um vírus mortal circulando pela sociedade, a causar morte e sofrimento e a exigir sérias restrições da atividade social e econômica, não se deveria cogitar de afastar do cargo o presidente da República. Esse raciocínio foi, no entanto, inteiramente invalidado pela conduta de Jair Bolsonaro. Suas ações e omissões na pandemia impuseram à Nação uma nova preocupação, dentro de um quadro que já era bastante desafiador.

Não se diga que essa reação foi apenas nos primeiros meses da pandemia, nos quais poderia haver alguma perplexidade do poder público perante um fenômeno completamente novo. Mesmo agora, com protocolos bem consolidados pela comunidade internacional e vacinas contra a covid-19 aprovadas, o presidente Jair Bolsonaro continua se mostrando completamente incapaz de lidar responsavelmente com a crise sanitária.

A reiterada conduta de Jair Bolsonaro motivou, por exemplo, a apresentação por cinco partidos da oposição (PT, PDT, PSB, Rede e PCdoB) de uma nova denúncia coletiva, baseada, entre outros pontos, na morte por falta de oxigênio de pacientes no Amazonas e no Pará.

Esse excepcional conjunto de pedidos de impeachment durante a pandemia não pode ser ignorado. Entre outras coisas, manifesta que o sistema de controle amplo dos crimes de responsabilidade, previsto no Direito brasileiro, está funcionando. Segundo a Lei 1.079/1950, qualquer cidadão pode denunciar o presidente da República ou ministro de Estado por crime de responsabilidade perante a Câmara dos Deputados.

Segundo o Estado apurou, dos 61 pedidos de impeachment apresentados desde janeiro de 2019, apenas 5 foram arquivados, por descumprimento de requisitos formais, como a falta de assinaturas. Existem, assim, 56 pedidos sobre a mesa do presidente da Câmara dos Deputados, a quem compete verificar o preenchimento dos requisitos legais e, se for o caso, submetê-los à apreciação de comissão especial, composta por representantes de todos os partidos. O caráter especial dos tempos atuais – apesar do início da vacinação, o País ainda está distante de vencer a pandemia – não deve significar a inviabilidade, por princípio, de qualquer pedido de impeachment.

A maioria das denúncias contra o presidente da República por crime de responsabilidade ocorreu precisamente em função de sua conduta no enfrentamento da crise sanitária. Depois de quase um ano de pandemia, Jair Bolsonaro deu mostras mais que suficientes de que não vai mudar. O Direito e a Política dispõem de instrumentos para sanar essas situações. Que o presidente da Câmara não tenha receio de usá-los. O País não pode ficar refém de alguém que despreza não apenas a Constituição, mas a vida e a saúde de sua população.

Ainda longe da vacinação em massa – O Estado de S. Paulo / Opinião

Há um risco nada desprezível de que uma campanha massiva só ocorra ao longo de 2022.

O Brasil tem 212 milhões de habitantes. Epidemiologistas calculam que entre 180 e 190 milhões precisarão ser imunizados contra a covid-19 para que a cobertura vacinal atinja o patamar necessário para frear a disseminação do novo coronavírus no País.

O Sistema Único de Saúde (SUS) tem capacidade e experiência para vacinar milhões de brasileiros rapidamente em todo o território nacional. O Programa Nacional de Imunizações (PNI) é referência em vacinação massiva. Só existe um problema, e muito grave: não há vacinas na quantidade que o Brasil precisa.

Hoje, o País só conta com os 6 milhões de doses da Coronavac aprovadas para uso emergencial pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Em que pese a louvável diligência do governo de São Paulo, sem a qual nem isso haveria, é uma quantidade pequena, suficiente apenas para vacinar um punhado de pessoas em cerimônias oficiais Brasil afora e uma ínfima parcela dos grupos prioritários, considerando que cada pessoa deve receber duas doses da vacina. Até amanhã, o Instituto Butantan espera obter a aprovação da Anvisa para mais um lote de 4,8 milhões de doses da Coronavac, desde, é claro, que haja Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA) em volume suficiente. É muito provável que consiga, mas ainda é pouco.

A Anvisa também autorizou o uso emergencial de um lote de 2 milhões de doses da vacina Oxford/AstraZeneca, produzida pelo Serum Institute, na Índia. Mas, a despeito do estardalhaço com que o governo federal anunciou a chegada deste carregamento ao País no domingo passado, não houve a entrega. Prevê-se que estas vacinas cheguem ao Brasil no fim de semana.

No futuro, tanto o Butantan como a Fiocruz vão produzir as duas vacinas no Brasil sem depender do IFA que vem da China, mas ainda não está claro quando os laboratórios terão esta independência.

Contando com os insumos externos, o Butantan prevê entregar 46 milhões de doses da Coronavac ao Ministério da Saúde até março. Com a conclusão da obra de sua nova fábrica, no fim do ano, o instituto paulista prevê fabricar 100 milhões de doses por ano a partir de 2022. A Fiocruz planeja entregar um total de 100,4 milhões de doses da vacina Oxford/AstraZeneca até junho e mais 110 milhões de doses até o final de 2021. Mas tais prazos e quantidades podem estar comprometidos. A China suspendeu o envio do IFA ao Brasil sob alegação de “entraves burocráticos” e “alta demanda”.

Como se vê, há risco nada desprezível de que uma campanha massiva de vacinação da população só vai ocorrer ao longo de 2022.

É evidente que é enorme a demanda por IFA no mundo todo. Mas a posição desfavorável do País nesta fila pode estar relacionada ao comportamento hostil, quase patológico, do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, em relação à China e às omissões do presidente Bolsonaro. Esforços de reaproximação com os chineses, a fim de destravar o envio do IFA, estão sendo feitos, principalmente pelo presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia. Oxalá surtam efeito.

A insegurança em relação à quantidade de vacinas de que o País poderá dispor neste ano revela o quão pernicioso foi o comportamento desleixado de Bolsonaro em relação a tema tão vital. E diz muito sobre sua desastrosa aposta em uma só vacina, a Oxford/AstraZeneca, da qual, repita-se, ainda não há uma dose sequer pronta para aplicação no País.

Bolsonaro tem de começar a trabalhar de uma vez por todas para que todos os cidadãos sejam vacinados o mais rápido possível. A Nação está farta de tanto descaso e incompetência, quando não perversidade. Mais de mil brasileiros morrem de covid-19 todos os dias e só a vacinação em massa é capaz de frear este morticínio.

É urgente buscar acordos com outros fabricantes para trazer ao País tantas doses de vacinas quanto for possível. Não se sabe por quanto tempo cada vacina oferece proteção contra o vírus, milhões de doses serão necessárias.

Bolsonaro também precisa abandonar a demagogia e permitir que empresas privadas adquiram vacinas. Toda ajuda é bem-vinda nesta hora grave.

O alarme estridente do BC – O Estado de S. Paulo / Opinião

Juros continuam em 2%, mas Copom alerta para risco importante de alta da inflação.

Atenção, governo, mercado e cidadãos em geral: há fortes sinais de perigo no front da inflação e pode ser necessário, em breve, apertar a política de juros. Esta é a principal mensagem transmitida pelo Banco Central (BC) em comunicado sobre a última reunião de seu Comitê de Política Monetária, o Copom. Nessa reunião se decidiu mais uma vez manter a taxa básica em 2% ao ano, mas essa estratégia está chegando ao limite. Há também um recado implícito – e muito grave. Se for preciso mexer no custo do dinheiro e encarecer o crédito, será enfraquecido o único instrumento de estímulo econômico em operação neste momento.

Qualquer outro dispositivo dependeria da equipe econômica, ainda em busca de meios para sustentar a recuperação. O auxílio emergencial acabou em 31 de dezembro. As ações excepcionais permitidas na fase de calamidade pública estão encerradas. Janeiro está no fim e ninguém pode dizer com alguma segurança, até agora, como se combinarão em 2021 o reparo das finanças oficiais, a criação de empregos e a expansão dos negócios.

Com juros mais altos a dívida pública ficará mais cara, cada rolagem terá custo maior e será mais difícil moderar seu crescimento. Isso reduzirá o espaço, já muito estreito, de administração das finanças públicas. O governo poderá precisar de maior austeridade, mas isso dependerá dos interesses eleitorais do presidente da República. Decisões pouco austeras poderão ser facilitadas, segundo avaliação corrente no mercado, se o candidato do presidente Jair Bolsonaro, Arthur Lira, chegar à presidência da Câmara dos Deputados.

O mercado pode elevar seus juros antes de um aumento da taxa básica pelo Copom. Também para isso os diretores do BC, membros do comitê, vêm chamando a atenção há meses. O custo do financiamento, especialmente do Tesouro, é em grande parte determinado pelas expectativas de evolução das contas públicas e da inflação. Essas expectativas podem piorar sensivelmente, se houver fortes sinais de abandono da responsabilidade fiscal.

Por enquanto, segundo o Copom, é possível manter os juros básicos em 2% ao ano, o nível mais baixo da série histórica. As estimativas ainda apontam inflação compatível com as metas oficiais até 2022. Mas nenhuma decisão está garantida. A reunião de quarta-feira oficializou o abandono do forward guidance, ou orientação prospectiva, recurso de comunicação mantido por vários meses.

Pelo forward guidance, o Copom indicava a intenção de manter o estímulo monetário enquanto certas condições perdurassem. Essas condições sumiram. As expectativas de inflação, assim como as projeções de inflação do cenário básico, “estão suficientemente próximas da meta de inflação”, considerado o horizonte relevante, correspondente aos anos de 2021 e 2022. Mais que isso: aumentou o risco de estouro das metas.

No jargão do BC, “as diversas medidas de inflação subjacente apresentam-se em níveis acima do intervalo compatível com o cumprimento da meta de inflação”. Em outras palavras: os núcleos de inflação, calculados com exclusão de certos preços mais sujeitos a instabilidades, indicam tendência preocupante, com risco maior de superação dos limites oficiais.

De imediato, a alta das cotações internacionais pressiona os preços internos dos alimentos e pode afetar também os preços dos combustíveis. Isso pode elevar a inflação nos próximos meses. O Copom continua avaliando esses choques como temporários, embora sejam mais persistentes do que se esperava. Mas o plano é seguir monitorando esses choques e seus efeitos.

Se a inflação se agravar, as famílias terão dificuldades adicionais para manter o nível de consumo, e isso afetará a demanda de vários tipos de produtos industriais e de serviços. Pior, ainda, se o surto inflacionário for puxado pelos preços da comida. Se o mercado se assustar com tolices cometidas em Brasília, o dólar poderá subir e aumentar o desajuste dos preços. O Copom se absteve de explicitar estas advertências finais. Mas no governo, espera-se, deve haver gente preparada para percebê-las.

Investigue-se –Folha de S. Paulo / Opinião

Procuradoria-Geral e Congresso devem examinar conduta de Bolsonaro na pandemia

Não deixou de ser revelador o comunicado divulgado pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, afirmando que compete ao Congresso Nacional a responsabilização de integrantes da cúpula dos Três Poderes —leia-se o presidente Jair Bolsonaro— por eventuais ilícitos no combate à Covid-19.

O tom defensivo do texto expõe um chefe do Ministério Público Federal acuado. “Segmentos políticos clamam por medidas criminais contra autoridades federais, estaduais e municipais”, diz o ofício, que não menciona o presidente e apenas cita discretamente o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello.

Imediatamente, o documento de Aras provocou reações internas. Seis subprocuradores-gerais que compõem o Conselho Superior do MPF apontaram, com razão, que a “referida nota parece não considerar a atribuição para a persecução penal de crimes comuns e de responsabilidade da competência do Supremo Tribunal Federal”.

Pela Constituição, compete ao Legislativo julgar crimes de responsabilidade, mas cabe à Procuradoria investigar crimes comuns de autoridades com foro no Supremo Tribunal Federal, entre elas o presidente e seus ministros.

No caso do mandatário, a Carta exige que dois terços da Câmara dos Deputados admitam uma acusação —o que não impede, no entanto, que se instaurem investigações quando necessário.

Aras até tomou providências relativas à tragédia da falta de oxigênio em Manaus, mas apenas em relação às autoridades municipais e estaduais. Quanto ao governo federal, as medidas se restringiram às de caráter administrativo, entre elas pedir explicações ao inepto general ministro da Saúde.

Do nebuloso comunicado oficial do duvidoso procurador, resta verdadeiro que cabe ao Congresso o exame de crimes de responsabilidade, definidos pela lei 1.079, de 1950, e puníveis com o impeachment —e, no caso de Bolsonaro, trata-se de tema hoje em debate.

Levantamento da Folha encontrou ao menos 23 situações que poderiam suscitar questionamentos dessa ordem —a legislação descreve 65 possibilidades. Até agora, com efeito, 61 pedidos de impeachment do presidente foram apresentados à Câmara dos Deputados, dos quais 5 foram arquivados.

Este jornal já defendeu que o Legislativo se debruçasse sobre as acusações de interferência indevida na Polícia Federal feitas ao mandatário pelo ex-ministro Sergio Moro, da Justiça. Agora, também a conduta de Bolsonaro diante da pandemia, que transcende o descaso e a incompetência, merece investigação minuciosa.

Sem prejuízo das obrigações da Procuradoria-Geral, a um Congresso altivo cabe fazer sua parte.

Aplicativo da desfaçatez – Folha de S. Paulo / Opinião

Agora desativado, serviço da Saúde fazia prescrição de remédios ineficazes

É simbólico da maneira calamitosa como o governo enfrenta a pandemia o fato de que, enquanto o suprimento de oxigênio em Manaus chegava ao fim, o ministro da Saúde, em visita à cidade, se ocupasse do lançamento de um aplicativo destinado a promover um inexistente tratamento precoce aos acometidos pela doença.

Na interminável lista dos desmandos da administração federal ao longo da emergência sanitária, a defesa obstinada de um conjunto de fármacos supostamente eficazes, hidroxicloroquina à frente, é talvez o mais duradouro.

Centenas de grupos de pesquisa escrutinaram essa e outras drogas e a conclusão é que, se elas têm efeito sobre a moléstia, é diminuto demais e não compensa o risco de efeitos adversos.

Nada disso demoveu Jair Bolsonaro e seu preposto na Saúde, general Eduardo Pazuello, que seguiram promovendo, ao arrepio das recomendações científicas, o uso das substâncias, enquanto o presidente colocava em dúvida estratégias comprovadas como o isolamento social, o uso de máscaras e, absurdo dos absurdos, as vacinas.

No caso da cloroquina, o governo ainda tem de se haver com um enorme estoque da droga, produzida pelo Exército ou doada pelos Estados Unidos, e há meses tenta repassá-lo a estados e municípios. Em Manaus, isso ficou explícito na pressão exercida para a distribuição desse e de outros medicamentos aos pacientes.

Integrantes do ministério fizeram ronda nas Unidades Básicas de Saúde da cidade para estimular o uso das medicações. A pasta ainda tratou como “inadmissível”, em documento enviado à Secretaria de Saúde de Manaus, a opção de não utilizá-las.

Completa o descalabro o famigerado aplicativo TrateCOV, providencialmente retirado do ar nesta quinta (21). Criado para auxiliar médicos e enfermeiros, o programa receita, para qualquer combinação de sintomas genéricos, como fadiga, dor de cabeça e diarreia, o uso de cloroquina e ivermectina, além de antibióticos.

Talvez temeroso das possíveis consequências de elevar uma terapia sem respaldo científico à categoria de política pública, um dissimulado Pazuello afirmou dias atrás que sua pasta nunca incentivou o tratamento, mas sim o atendimento precoce.

São fartos, porém, os registros em contrário, nos canais oficiais e nas assertivas dele e de Bolsonaro.

Incertezas não aconselham um aumento de juros logo – Valor Econômico /Opinião

O cenário externo benigno permite ao BC ganhar tempo até que a realidade afaste incertezas

O Banco Central retirou a orientação de que não elevaria a taxa de juros enquanto não houvesse mudança para pior na instância fiscal e as expectativas de inflação não encostassem na meta. Negativos, os juros poderão subir porque a inflação se mostrou mais persistente do que esperava o BC e, o que é mais relevante, “as diversas medidas de inflação subjacente apresentam-se em níveis acima do intervalo compatível com o cumprimento da meta para a inflação”. Qual será o timing e a intensidade do ciclo de alta é uma aposta em aberto. A fragilidade da economia desaconselha altas intensas e rápidas.

Embora a política fiscal não tenha sofrido qualquer alteração, as chances de que isto ocorra estão aumentando, o que desequilibra o balanço de riscos da inflação. Mas a possibilidade de instituição de novo auxílio emergencial, discutida pelos dois candidatos apoiados pelo presidente Jair Bolsonaro para ocupar o comando da Câmara e do Senado - Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (DEM-MG) - difere de outras tentativas de furar o teto de gastos. Ela decorre de um ambiente de deterioração das perspectivas sanitárias e de crescimento, emprego e renda e estão sob o signo do provisório.

O Ministério da Economia não vê necessidade de novo auxílio e que o impulso de recuperação da economia normalizará a situação por si só. Agiu da mesma forma no início da pandemia, para em seguida deslanchar série enorme de estímulos fiscais e monetários. Para isso foram usados instrumentos que contornam o teto de gastos (orçamento de guerra e a decretação de calamidade pública), mas não o extingue.

É um desafio para o BC, para quem, segundo o comunicado, “prospectivamente, a incerteza sobre o ritmo de crescimento da economia permanece acima da usual, sobretudo para o primeiro trimestre do ano”. Com a perda de fôlego da recuperação já no fim do ano passado e possibilidade de retração do PIB nos primeiros três meses do ano, reforçada pelo atraso na vacinação, elevar os juros logo pode se revelar uma decisão prematura. Esse é o principal alerta que soa entre as principais autoridades monetárias do mundo, o Fed americano e o Banco Central Europeu, assim como no staff do Fundo Monetário Internacional.

Analistas ligados ao mercado financeiro estimam que a Selic possa subir para 3% ou 4,5% até dezembro. Como a situação econômica é movediça, podem estar errados tanto agora como quando apostavam que a inflação de 2020 ficaria abaixo de 2% - mudaram de opinião em um par de meses. Simplesmente dobrar a taxa de juros com a economia em convalescência - a uma boa distância do nível medíocre de antes da pandemia - pode abortar a recuperação.

A alta de preços foi potencializada pelo comportamento do dólar, que passou a se valorizar mesmo com a mudança favorável ao Brasil nas relações de troca. A origem desse comportamento é controversa: isso se deve ao fato de os juros terem caído demais ou aos riscos fiscais muito altos? No primeiro caso, é difícil sustentar que juro ligeiramente maior auxiliaria a recuperação da economia ou inverteria muito a trajetória do câmbio - que não está na mira do Banco Central. No segundo caso, elevar os juros só pioraria o problema fiscal.

A pandemia destruiu oferta e demanda ao mesmo tempo. Um dos resultados é que o consumo foi deslocado para bens de baixa elasticidade de renda, caso típico dos alimentos, que puxam o IPCA para o alto enquanto a capacidade de produção não foi recomposta. A elevação das commodities, com um dólar valorizado, propagou a pressão de preços a outros setores. O BC tem o dever de agir para impedir os efeitos secundários destes choques e o alerta dos núcleos, que se desimcompatibilizaram com as metas, é um dos mais relevantes. Se, no entanto, como aposta o BC, as altas são temporárias, não há motivo para açodamento, ainda menos quando a economia se retrai. E, se necessário agir, o movimento tem de ser gradual, tentativo.

Pelas projeções do boletim Focus, o PIB crescerá 3,45% em 2021 e ainda estará quase um ponto percentual abaixo do de 2020. É certo que o BC está de olho em 2022, mas não há nenhuma aceleração do crescimento que justifique um aperto significativo, e sim o contrário - obstáculos à expansão, como o repique da covid-19 e o aumento do desemprego. O cenário externo benigno, ademais, permite ao BC ganhar tempo até que a realidade afaste parte das incertezas.

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