Folha de S. Paulo / Ilustríssima
Estudo sobre influência dos pleitos
municipais na eleição federal aponta vantagem ideológica da direita neste ano
[RESUMO] Análise
histórico-comparativa mostra que eleições de prefeitos e vereadores captam
tendências ideológicas que se verificam nas disputas estaduais e nacionais dois
anos depois. Resultados de 2020 apontam a necessidade de candidatos da esquerda
e do centro atraírem o voto da direita para que tenham chance contra Bolsonaro.
Embora as eleições
municipais despertem grande atenção da mídia e mobilizem regularmente
fatias expressivas do eleitorado, a literatura da ciência política
frequentemente considera esses pleitos como de segunda ordem, ofuscados,
subordinados ou mesmo desconectados das demais competições.
Contribuiriam para essa suposta
desarticulação as características de nosso sistema político, fragmentado
em inúmeras legendas irregularmente distribuídas no extenso território nacional,
além de baixas taxas de identificação partidária e um calendário eleitoral que
separa temporalmente as disputas por cargos eletivos locais daquelas estaduais
e nacionais.
Investigando a conexão entre as três
esferas, propomos um novo enquadramento analítico para o tema no primeiro
capítulo do livro "Eleições Municipais na Pandemia", organizado por
Antonio Lavareda e Helcimara Telles, a ser publicado neste semestre pela
Editora FGV. Por meio dele, é possível observar padrões de articulação entre as
competições que ocorrem nos diferentes níveis da federação, uma vez agregados
os partidos em campos ideológicos (esquerda, centro e direita), conforme a
classificação predominante entre os especialistas.
Revisitando o percurso sociopolítico desde
a transição democrática em 1985 até o pleito mais recente,
identificamos que as disputas pelos cargos de vereador e prefeito têm
funcionado como "barômetros ideológicos" das eleições gerais
posteriores, sinalizando antecipadamente as chances dos diferentes campos.
Entre seus principais resultados, a investigação assinala que o desempenho dos grupos ideológicos na corrida por assentos nas Câmaras Municipais viabiliza a projeção de resultados nas disputas proporcionais seguintes (Assembleias Legislativas e Câmara dos Deputados) e serve também como parâmetro para as estratégias de coordenação dos principais atores nas competições majoritárias subsequentes.
Examinando
a votação dos agregados ideológicos em todas as eleições da Nova República até
o momento, identificamos ciclos com dinâmicas internas diferenciadas,
delimitados por eleições críticas (1989, 2002 e 2018) e por uma eleição
restauradora (1994).
Definimos como críticas, de acordo com a
literatura da ciência política, aquelas competições presidenciais realizadas em
meio a crises socioeconômicas e/ou políticas de grande monta, que apresentam,
no caso de sistemas pluripartidários, elevados índices de fragmentação
eleitoral, resultando na dissolução dos alinhamentos preexistentes.
Já as eleições restauradoras ou
contradesviantes são aquelas que, sequenciando uma disputa crítica, resgatam as
balizas do ordenamento anterior.
A pesquisa revelou que os realinhamentos,
que imprimiram novos contornos competitivos ao sistema, foram precedidos por
alterações sensíveis no desempenho dos partidos de diferentes espectros nos
pleitos locais imediatamente anteriores.
Por meio de um exame comparado e com o
auxílio de testes estatísticos, constatamos que as eleições municipais de 1988,
1992, 2000 e 2016 sinalizaram a iminência de ciclos eleitorais favoráveis aos
campos ideológicos que chegaram à Presidência —direita em 1989, centro em
1994, esquerda
em 2002 e direita
em 2018—, com reflexos também sobre os demais cargos em disputa nas
eleições gerais.
Por meio de uma abordagem sociológica e
histórico-comparativa, esclarecemos que os processos de realinhamento,
ocorridos nas eleições presidenciais apontadas, operaram sob a lógica de uma causalidade
complexa, que envolveu diferentes fatores explicativos. Para tanto, percorremos
sinopticamente as conjunturas críticas em que estão inseridos, mapeando os
principais eventos políticos que contribuíram para a emergência e o desdobrar
de cada ciclo.
Orientada pela perspectiva de que as
eleições locais exprimiriam avaliações latentes sobre as ideologias em
disputa, a
pesquisa expõe o papel das competições municipais como testes da receptividade
do eleitorado a candidaturas de diferentes matizes políticos, reverberando
sobre as competições estaduais e nacionais posteriores. De que maneira isso
ocorre?
Sendo pleitos intermediários, realizados no
meio dos mandatos estaduais e nacionais, eles atualizam o nível de apoio a
legendas de diferentes espectros. Além disso, a grande proximidade entre
eleitores e candidatos nas municipalidades favorece o compartilhamento de
valores e atitudes políticas, aferindo-se a partir deles o peso dos humores
locais sobre o destino das próximas eleições gerais.
Assim, seus resultados indicam que as
disputas municipais, especialmente para vereador, operaram como barômetros
capazes de sinalizar eleições críticas, as quais delimitaram ciclos eleitorais
promissores a diferentes espectros ideológicos, conforme veremos a seguir.
Na etapa fundacional da Nova República, o
PMDB (hoje MDB), então única legenda de centro, que havia liderado a
resistência aos governos militares e assumira a primeira Presidência civil após
21 anos de ditadura, obteve uma grande vantagem nas duas primeiras eleições do
novo regime.
Em 1985, o partido conquistou 63,2% das 201
prefeituras disputadas, incluindo 20 das 25 capitais (o estado de Tocantins foi
criado em 1988). No ano seguinte, embalado pelo congelamento de preços do Plano
Cruzado, conseguiu eleger seus candidatos a governador em 22 de 23 estados em
que concorreu.
No entanto, a crise de representação que
sobreveio com o Plano Cruzado 2 atingiu em cheio a legenda, levando o país a
uma eleição crítica em 1989, na primeira disputa presidencial pós-ditadura, que
premiaria um outsider da direita, Fernando Collor. Um ano antes, em 1988, os
partidos de direita já haviam alcançado um desempenho expressivo nas disputas
municipais.
Mais tarde, logo após o afastamento de
Collor, em 1992, as eleições municipais assinalariam o desgaste do seu campo,
abrindo espaço, dois anos depois, com o sucesso do Plano Real, para uma eleição
restauradora, que devolveria a Presidência ao centro, agora sob domínio tucano
(1994-2002).
A esquerda,
evoluindo paulatinamente desde as eleições municipais de 1988, alcançaria um
êxito sem precedentes na Nova República com as competições locais de 2000. Naquele
ano, antecipando o realinhamento que deu início ao longo ciclo eleitoral
petista (2002-2016), a esquerda praticamente empatou com o centro nas disputas
pelas prefeituras e o superou em relação à proporção nacional de votos
recebidos para vereador —28,5% contra 24,7%.
Do outro lado do espectro, pouco percebida
porque ocorria no interior do ciclo da esquerda, iniciava-se nas disputas
municipais de 2012 a trajetória ascensional da direita, que inverteria o
declínio desencadeado a partir de 1992, com a queda de Collor.
O processo fica mais nítido quando
observamos o crescimento do seu desempenho nacional nos pleitos para vereador
—de 41,9% dos votos, em 2008, para 45,1% em 2012. Nas eleições locais
seguintes, realizadas poucos meses após o impeachment da presidente petista, a
direita deu um novo salto.
Entre 2012 e 2016, o campo amplificou
significativamente sua votação nacional para prefeito (de 29,8% a 37,7%) e
vereador (de 45,1% a 52,6%), projetando o realinhamento do sistema na eleição
crítica de 2018.
A pesquisa revela, portanto, como o desempenho dos campos ideológicos nas
competições locais encontra-se articulado às votações nas eleições
proporcionais para Assembleias Legislativas e Câmara dos Deputados, nas
eleições majoritárias estaduais (governador e senador) e nas disputas
presidenciais.
Chama atenção, ainda, para os distintos
desdobramentos dos movimentos promovidos por cada ciclo no plano subnacional,
evidenciando diferenças marcantes entre eles. Enfatiza-se, por exemplo, a maior
congruência observada entre a votação dos campos nas eleições municipais e
gerais durante o novo ciclo da direita.
Vale notar que o fenômeno teve lugar antes
ainda da proibição das coligações nas eleições proporcionais, evidenciado pela
expressiva articulação entre a proporção estadual de votos recebidos por cada
campo nas eleições para vereador em 2016 e seu desempenho em 2018.
A despeito das relações personalistas e das
idiossincrasias das disputas nesse plano, o trabalho evidencia que as eleições
municipais são capazes de oferecer um entendimento sistêmico a respeito da
política brasileira, captando, no seu agregado, a tendência ideológica das
competições seguintes.
A partir do desempenho da esquerda, do
centro e da direita em 2020, o barômetro local alimenta algumas conjecturas
sobre a competição presidencial deste ano.
O que as últimas disputas municipais foram
capazes de sinalizar? Os efeitos da pandemia e
o refluxo da Lava Jato parecem ter redefinido as balizas do
eleitorado, reconectando-o às legendas tradicionais. Com a valorização da
experiência dos competidores, predominou a reeleição dos prefeitos (63%). Onde
havia propaganda eleitoral pela TV, os vitoriosos contaram com forte presença
nessa plataforma, ofuscando o papel das redes sociais.
Ampliou-se,
em 2020, o contingente de votos da direita, chegando a 59,2% nos pleitos para
vereadores e a 54,3% nas competições por prefeituras. No entanto, ocorreu
uma mudança importante no interior desse campo: uma nítida recuperação dos
partidos tradicionais que haviam sido atropelados pela ascensão de outsiders em
2016 e 2018.
Para os adversários de Bolsonaro, o
barômetro local oferece uma clara percepção. Mais do que em qualquer momento
anterior, esquerda e centro, em declínio desde o pleito de 2016, dependerão do
eleitorado da direita para serem vitoriosos neste ano. A
quantidade de votos que conseguirem subtrair à órbita bolsonarista selará o
destino da eleição.
A regularidade observada na série de oito
competições presidenciais na Nova República, de 1989 a 2018, pesa contra
esquerda e centro na disputa de 2022. Nunca o espectro ideológico que chegou ao
Planalto nesse período deixou de crescer nas eleições municipais imediatamente
anteriores.
Ainda que PT e PSOL tenham sido os únicos
da esquerda que conseguiram interromper em 2020 a queda na votação de prefeitos
e vereadores, os
números petistas permanecem muito distantes dos de 2012, quando a
esquerda atingiu seu melhor desempenho em pleitos locais desde o fim da
ditadura. Ainda assim, como já se desenhava naquela disputa a guinada da
direita, Dilma
Rousseff foi reeleita por margem apertada na corrida presidencial de 2014.
A necessidade de uma efetiva coordenação
transversal entre lideranças de diferentes espectros não é um fato novo.
Candidatos de direita chegaram à Presidência duas vezes praticamente sozinhos
(1989 e 2018), mas o fizeram em eleições críticas.
Por sua vez, o centro só teve êxito quando
competiu associado à direita (em 1994 e 1998), assim como foi necessária uma
aliança esquerda-direita para Lula e o PT chegarem ao poder, em 2002.
Ademais, além da vitória nas urnas, e não menos importante, restará sempre a questão da governabilidade. E, no Congresso que se vislumbra com base na eleição de 2020, a bancada da direita dificilmente terá peso muito menor do que hoje.
*Antonio Lavareda, é doutor em ciência política e professor colaborador da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco)
*Vinícius Silva Alves. é doutor em ciência política e editor-adjunto da revista Teoria & Pesquisa
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