sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Maria Cristina Fernandes - Contrastes das transições antecipam Lula III

Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

‘Eles não são loucos’ recupera a transição de 2002. Da formação da equipe econômica de Lula nos gabinetes de Malan e Fraga às viagens internacionais antes da posse, nada poderia ser mais diferente

Na tarde do dia 16 de julho de 2002, Stanley Fischer, à época no Citigroup, recebeu o então deputado José Dirceu. Corria a quarta campanha presidencial petista, que acabaria por levar Luiz Inácio Lula da Silva, pela primeira vez, ao Palácio do Planalto.

Dirceu voara aos Estados Unidos na condição de embaixador da “Carta ao Povo Brasileiro” por sugestão de Luiz Gushiken, que vira na viagem uma maneira de levar Dirceu a reconhecer a importância da carta idealizada por Antonio Palocci.

Gushiken, que se tornou secretário de Comunicação do governo petista, mirou no que viu, acertou no que não viu. Dirceu foi ao encontro com o empresário Josué Gomes, filho do então vice de Lula, o senador José Alencar. As credenciais do anfitrião, ex-diretor-geral do FMI e ex-professor, no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, de dois ex-presidentes de bancos centrais, Ben Bernanke (Fed) e Mario Draghi (BCE), intimidavam.

Ao receber a carta, Fischer foi direto ao ponto: “Vocês foram muito inteligentes ao colocar um empresário de candidato a vice-presidente”. Virou-se para Josué Gomes e completou: “Você não estaria com um candidato se temesse levar prejuízo nas suas empresas por causa de políticas econômicas erradas”. E voltando a Dirceu, concluiu: “Isso [Alencar na vice] vale mais do que este pedaço de papel”.

Três semanas antes, a jornalista Sonia Racy, durante fórum do Partido Republicano numa estação de esqui no Colorado, registrara o ceticismo do próprio Fischer e o descrédito de outro economista estrelado, Allan Meltzer: “Um candidato como Lula, que se diz admirador de Fidel Castro e Hugo Chávez, não tem a confiança dos mercados”.

A história está contada em “Eles não são loucos” (Portfolio-Penguin, 2022), livro de João Borges sobre a transição do governo Fernando Henrique Cardoso para o de Lula. O jornalista, que passou pela GloboNews e hoje é diretor de comunicação da Federação Brasileira dos Bancos, era assessor de imprensa do presidente do BC, Arminio Fraga, o que o torna testemunha de muitos dos fatos narrados.

Seus relatos iluminam, por contraste, a transição para o terceiro governo Lula. Ante o muro de desconfiança internacional que a campanha petista enfrentava num país pendurado no FMI, o que se vê hoje é quase uma rendição externa a Lula, prioritariamente pelo papel a ser desempenhado na agenda climática.

Antes mesmo que o presidente eleito se deslocasse para sua visita aos Estados Unidos antes da posse, o presidente Joe Biden enviou dois assessores sêniores para encontrá-lo, o conselheiro de segurança nacional, Jake Sullivan, e o diretor para assuntos do hemisfério ocidental, Juan Gonzalez.

Não poderia haver maior contraste com a viagem de 2002. Para reconstituí-la, o autor fez quatro entrevistas com Dirceu, a primeira delas logo depois de sua saída da prisão, com a tornozeleira eletrônica ligada à tomada. Contou ainda com a memória do tradutor dos encontros, Marcos Troyjo, hoje presidente do banco dos BRICs, e do embaixador do Brasil em Washington, Rubens Barbosa. E, principalmente, teve acesso à agenda da viagem guardada pelo seu principal organizador, o empresário Mário Garnero.

De permanente só o descuido em relação aos patrocinadores das incursões. Vinte anos antes de Lula embarcar para a COP27 no avião de José Seripieri Filho, o dono da Qsaúde preso numa operação contra caixa 2 na campanha de José Serra, Donna Hrinak, então embaixadora dos EUA no Brasil, registraria seu espanto ao ver Dirceu, às vésperas da viagem, pousando no heliporto de Garnero para encontrá-la.

A desconfiança externa em relação ao Brasil era tamanha que Roberto Setubal, à época presidente do Itaú, abandonou o discurso escrito que preparara para o encontro da Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos, às vésperas do segundo turno de 2002, e disse: “Não tenho dúvida de que o Lula será o próximo presidente do Brasil. Esta não é uma eleição populista. Ele está sendo eleito porque está fazendo uma boa campanha. Ele é honesto e fala ao coração do povo [...] Isso não é uma revolução, é uma transição democrática. Eu diria que, neste momento, a comunidade empresarial brasileira está preparada para apoiar o Lula”. Quinze anos depois, Setubal resumiria a reação da plateia ao autor: “Foi um silêncio de ouvir moscas voando”.

Os temores da comunidade financeira internacional, paradoxalmente, facilitaram o acordo fechado com o FMI naquele ano como atesta o diálogo entre Murilo Portugal, que era o representante do Brasil no Fundo, e a número 2 da instituição, Anne Krueger.

“O senhor sabe que não fazemos acordo com países em ano de eleição”, foi a resposta.

“Então nesse caso vamos fazer uma coisa de que não gostamos. Mas vamos fazer.”

“O quê?

“Se o Lula ganhar, logo depois da eleição, nós vamos sacar do FMI tudo o que temos direito. São cerca de 16 bilhões de dólares, e vamos colocar esse dinheiro no cofre do Lula. Em janeiro, vocês conversam com ele. E a senhora sabe que ele não fala a língua de vocês.”

Seis meses depois, o número 1 do Brasil, já eleito, dobrara o número 1 do FMI. Em seu primeiro encontro com Lula, Horst Köhler já concluía: “Fiquei com a impressão de que ele é um líder do século XXI”. Um mês depois, já se abraçavam, como conta Borges no capítulo “Horst, o amigo alemão de Lula”. Ao se encontrarem na embaixada do Brasil em Paris, Lula lhe narrou sua história de vida e a saga de dona Lindu. “A certa altura, tocado pela fala de Lula, Köhler aproximou-se e perguntou: ‘Presidente, posso dar um abraço no senhor?’. Lula o acolheu num abraço demorado e, segundo [Murilo] Portugal, ambos choraram.”

Lula não dobrou o FMI apenas com a saga familiar, mas com uma meta de superávit ainda superior à esperada e com uma equipe econômica que foi praticamente formada nos gabinetes do Ministério da Fazenda e do Banco Central. O relato de Borges dos encontros de Palocci com Pedro Malan e Arminio Fraga sugere que ambos atuaram quase como “headhunters” do governo petista na indicação de quadros como Bernard Appy, Joaquim Levy, Marcos Lisboa e Otaviano Canuto. Este último foi arrancado de Malan depois que Palocci se queixou de pressão da economista Maria da Conceição Tavares para que a equipe tivesse um nome da Unicamp.

Se a afinidade de Palocci com Malan foi crescente, a relação do ex-ministro da Fazenda com Lula foi permeada pela desconfiança do petista de que ele era o preferido de FHC para sua sucessão. A vigilância era mútua. Malan conta a Borges detalhes de sua percepção sobre a mutação do Lula que se reapresentou ao país em 2002, do discurso ao corte de cabelo. Vinte anos depois, Malan tanto assinou carta em apoio à eleição de Lula quanto artigo, depois da eleição, alertando-o contra a frouxidão fiscal. Ao reagir ao artigo, Lula abandonou a animosidade daquela campanha: “Fiquei feliz ao saber de uma carta de pessoas importantes me alertando sobre problemas econômicos e dando sugestões”.

João Borges deixa clara sua percepção de que o rumo do governo e da equipe econômica seria outro se Palocci não tivesse assumido o programa de governo e a liderança do time econômico com a morte do ex-prefeito de Santo André Celso Daniel. Reproduz as controvérsias sobre a percepção de Lula à “Carta ao Povo Brasileiro”, mas fecha com aqueles que apostam em adesão contrariada. Não é o que ruma para acontecer agora, quando Lula reforça a perspectiva de indicação de Fernando Haddad, sinalizando que a política econômica será a dele, que detém o mandato.

João Borges dá conta de uma afinidade latente de Lula com Geraldo Alckmin que só afloraria 20 anos depois. Traz o relato do encontro de Lula com os sete governadores eleitos do PSDB em Araxá (MG) um mês depois do segundo turno de 2002. Sentado ao lado de Alckmin, Lula lhe pergunta sobre seus secretários. O governador diz que está esperando que ele forme o ministério para saber o que vai lhe sobrar, mas diz que já tem um nome para a Agricultura, Roberto Rodrigues. “Esse não”, reagiu Lula, que acabaria por tomar a dianteira no convite.

A afinidade já havia sido registrada no quarto volume dos “Diários da Presidência” (Cia das Letras, 2019), de Fernando Henrique Cardoso. Ao ser recebido por Lula para um churrasco na Granja do Torto, o ex-presidente ouviu do sucessor que José Serra, derrotado pelo petista, não galvanizaria o partido, Aécio Neves seria “fogo de palha” e que o melhor nome seria Geraldo Alckmin. No relato de FHC, Lula profetizou: “Acha que se eu não entrar na briga não tem jeito: o PSDB pode desaparecer como partido de influência nacional”.

Pelo acesso que desfrutava junto à equipe econômica e pelas mais de 100 entrevistas que fez, Borges recupera minúcias da passagem de bastão entre as equipes econômicas de maneira mais detalhada do que aquela entre os dois presidentes, já tratada pelo quarto volume dos “Diários”. Lá estão relatados cinco encontros entre os dois presidentes na transição, um deles com a presença da primeira-dama, Marisa Letícia, que conheceu o Alvorada num jantar entre os dois casais.

Esses encontros eram intercalados por declarações polêmicas de ambos. Estocavam-se num dia, brindavam no outro. Lula discutia a indicação de embaixadores com seu antecessor, contava-lhe os perrengues da formação do ministério e confidenciava as apreensões da vida presidencial.

Muitos embates se seguiriam entre os dois presidentes depois do fim do governo. Mas aquela transição, de tão emblemática, seria premiada pela Universidade de Notre Dame. Ao se despedir, à porta do elevador do Palácio do Planalto, numa conversa presenciada pelos dois escudeiros, Ana Tavares e Ricardo Kotscho, e confirmada por Fernando Henrique a Borges, Lula colocou a mão no rosto do seu antecessor, abraçou-o e lhe disse: “Fernando, você deixa aqui um amigo para sempre”. O livro traz fotos inéditas da despedida, cuja impossibilidade de reprise em 1º de janeiro é uma das poucas certezas desta transição.

2 comentários:

Anônimo disse...

Verdadeira história da política brasileira, e muito bem contada.
Parabéns!

ADEMAR AMANCIO disse...

Belo relato.