O Estado de S. Paulo
Se alguém deseja estar num genuíno estado de exasperação com a vida, pare de ler jornal e dedique-se às redes sociais e ao Whatsapp
Com alguma frequência, ouve-se que já não
seria necessário ler um jornal todos os dias porque a informação chega agora
“por outros meios”. Também se escuta a seguinte reclamação: estou pensando em
parar de ler os jornais porque, com suas críticas excessivas e outras tantas
tolerâncias, perderam o equilíbrio. Chegam a irritar. Qual é o sentido de ler algo
se depois fico irritado?
Sim, ler um bom jornal sempre envolve algum
incômodo. Entra-se em contato com gente que pensa diferente, que nos contraria,
que diz, de forma muito convicta, algo que nos parece uma insensatez. O jornal
é uma forma de contato habitual, diário, com a pluralidade da sociedade.
(Desconfie de jornais com os quais se concorda do início ao fim. Eles não
retratam o mundo em sua complexidade. Abdicaram do jornalismo para se tornarem
pirulitos agradáveis ao paladar do leitor.)
No entanto, eis a ironia da vida, todas as pessoas que conheço que pararam de ler jornais para não ficarem irritadas, depois que abandonaram a leitura diária da imprensa, ficaram ainda mais irritadas com o mundo, com os outros e com os próprios jornais. Se alguém deseja estar num genuíno estado de exasperação com a vida e com o que acontece ao seu redor no âmbito político, social e cultural, pare de ler jornal – e dedique-se ao Whatsapp e às redes sociais.
A leitura diária de jornais funciona como
um exercício privilegiado de pluralidade. Quem a abandonou está menos preparado
para lidar com as diferenças existentes na sociedade. O mundo torna-se uma
fonte mais intensa de perplexidade e irritação. Sem a leitura de jornais,
ficamos menos capazes da compreensão e mais propensos ao atrito.
Conhecer – ler, estudar e dialogar – a
partir de outras perspectivas produz desassossego. Tira da zona de conforto.
Mas desassossego sério, que impregna o corpo e a alma, é gerado pela
ignorância: a incompreensão do que está acontecendo ao seu redor, a sensação de
que se deveria viver num tempo diferente. Há um fenômeno cada vez mais
frequente. Tem gente que, de tão incomodada com o que vê ao seu redor, quer
voltar no tempo, vivendo, por exemplo, no século 19. E alguns ainda tratam essa
utopia como “conservadorismo”.
Aqui, entramos no outro ponto: os jornais
são necessários para conhecer a realidade contemporânea? Sim, definitivamente
sim. Em relação a tudo aquilo com que não temos contato imediato – ou seja, a
imensa maioria dos assuntos –, o jornalismo é a fonte mais confiável sobre o
tempo presente.
Na definição clássica, o direito é a arte
do justo. Pode-se dizer que o jornalismo é a arte do presente: a arte de narrar
o tempo presente. Ele tem método, mas não é a rigor uma ciência. O jornalismo é
um modo de apreender, a partir de critérios objetivos e verificáveis, a
realidade. Não é o mundo da pura subjetividade. Há um grande respeito pelo
factual. Por isso, além de estar sob contínua revisão, o jornalismo é sempre
feito coletivamente. Tem necessariamente uma dimensão institucional. Nunca é
mero afazer solitário, encerrado numa única individualidade, numa única
subjetividade.
Uma observação: jornalismo não é o título
da matéria, o tuíte sobre a reportagem ou o resumo dos jornais que nos chega
por meio de newsletters. Se estamos lendo apenas isso, já abandonamos o
jornalismo. De um jeito diferente, estamos vendo apenas a primeira página do
jornal exposta na banca de jornal. Jornalismo é o conteúdo inteiro das
reportagens, com o contexto dos fatos, suas relações, suas consequências e a
continuação no dia seguinte.
Os jornais são importantes no acesso à
realidade porque não representam apenas uma foto dela. A leitura diária dos
jornais oferece um filme do tempo presente. E é essa continuidade, um dia após
o outro, que produz a mágica: somos enxertados na compreensão do fluxo do tempo
presente, com seus movimentos e também com seus imobilismos. A leitura diária
dos jornais proporciona uma experiência radicalmente diferente da leitura
esporádica.
A complexidade da vida e da ação humana,
com suas múltiplas camadas, inviabiliza a pretensão da autossuficiência na
compreensão da realidade, na organização e síntese dessas informações. Queremos
conhecer o Congresso sem repórteres no plenário, nos corredores e nos
bastidores? Queremos julgar o Judiciário lendo apenas lacrações? Queremos
entender as reivindicações políticas de grupos minoritários ouvindo apenas o
nosso entorno social?
Não há conhecimento qualificado do mundo
contemporâneo sem jornalismo. A frase “não preciso dos jornais, já estou
informado por outros meios” significa, no melhor dos casos, que se abdicou do
acesso direto ao jornalismo e, agora, se informa pela leitura que outras
pessoas fazem do jornal que se deixou de ler.
Podemos e devemos exigir jornais melhores.
O jornalismo é sempre imperfeito. Mas abandonar sua leitura não produz
autonomia. É uma opção por alhear-se do tempo presente. É começar a desligar os
aparelhos. Pode-se admirar outras épocas, o contemporâneo tem também suas
deficiências, mas a vida sempre transcorre no presente.
Um comentário:
Ótimo artigo.
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