sábado, 25 de novembro de 2023

Dora Kramer - Um novo anormal

Folha de S. Paulo

Instituições não devem se sentir traídas, pois a elas não cabe dever de lealdade umas às outras

Por definição independentes e harmônicos, os Poderes da República em tese não deveriam usar de suas prerrogativas nem abdicar de seus deveres institucionais para mandar recados uns aos outros.

Mas, nesses que o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio Mello já definiu como "tempos estranhos", espetadas mútuas tornaram-se parte da cena nacional, completamente contaminada por contendas de natureza política.

A reação tão surpreendente quanto superlativa do STF a uma PEC que limita decisões monocráticas da corte, aprovada na véspera no Senado, inscreve-se nesse novo anormal. O tribunal tomou como provocação —e foi, menos pelo mérito e mais pela motivação do momento.

Consta que a ressurreição da emenda, que andava morna nos escaninhos da Casa, deveu-se ao desejo do presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), de atrair apoios dos bolsonaristas —em atrito permanente com o Supremo— para a candidatura de Davi Alcolumbre (União-AP) para sua sucessão. Tendo sido isso ou não o que moveu Pacheco a patrocinar a PEC, haveria outras maneiras de abordar a questão das decisões monocráticas, que no próprio Supremo são alvo de questionamento.

O contágio político entornou o caldo e levou a corte a receber a decisão como afronta ao Poder que tanto fez em prol da higidez democrática. Desceu um degrau e caiu no jogo da hostilidade, quando poderia ter deixado a coisa morrer na Câmara, como já sinalizara o presidente Arthur Lira (PP-AL). Ou, depois, dar a última palavra declarando a emenda inconstitucional.

Ao que parece, no entanto, o Supremo vislumbrou um precedente e decidiu impor um "alto lá" diante do risco de aquela ter sido apenas a primeira de uma série de decisões de interferência indevida do Legislativo no Judiciário.

Seja como for, nesse ritmo de troca de retaliações não se transita em bom caminho, pois a instituições não cabe se sentirem traídas nem devedoras de lealdade umas às outras.

 

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Exatamente.