domingo, 5 de novembro de 2023

Dorrit Harazim - O óbvio

O Globo

É a guerra mais brutal de parte a parte, escancarando a falência de soluções que visam à eliminação pura e simples do inimigo

Uma nota de rodapé da edição brasileira de “Ellis Island” — pequena preciosidade sobre a errância humana escrita por Georges Perec no início dos anos 1980 — ensina que a palavra Emet, em hebraico, significa “verdade”; contudo, se dela cortarmos a primeira vogal, ela passa a significar “morto”. Essa proximidade etimológica adquire sentido redobrado nos dias atuais, em que o menor descuido com a verdade pode significar mortandade múltipla. Nestes tempos em que o mundo está horrendo de feio, odiento e odioso, qualquer sinal de lucidez é bem-vindo.

O escritor e jornalista americano Ta-Nehisi Coates, autor de aclamada investigação sobre o que é ser negro nos Estados Unidos (“Entre o mundo e eu”), contou em entrevista recente por que decidiu juntar sua voz à causa palestina. Convidado a participar de um festival literário na Cisjordânia, ele se preparara lendo tudo o que lhe caía em mãos sobre o conflito. Percebeu que todas as reportagens, textos de opinião ou editoriais da mídia ocidental qualificavam o impasse como “complexo”, de alta “complexidade”. Pensou então que levaria tempo para discernir o certo do errado, compreender as raízes morais de cada convicção. Equivocou-se:

— O mais chocante de minha estadia lá foi constatar quanto a questão é descomplicada — contou ao programa “Democracy now!”.

A realidade da ocupação lhe gritou na cara já no segundo dia da viagem. Ele e o grupo de escritores convidados estavam na cidade de Hebron, ciceroneados por um guia palestino. Chegados a determinada rua, o anfitrião esclareceu que eles poderiam prosseguir sozinhos, se quisessem — para o guia nascido naquele chão, o trânsito estava proibido.

— Tudo ficou tão claro. E tão familiar. Eu me encontrava novamente em território onde a mobilidade é inibida, onde o direito à água é inibido, o direito à moradia é inibido, os direitos básicos, inclusive o direito ao voto para poder eleger a democracia, são inibidos — constatou.

Esta é a quinta guerra dos últimos 15 anos entre o grupo terrorista Hamas, que controla a Faixa de Gaza, e o Estado de Israel. É, também, a mais brutal e carniceira de parte a parte, escancarando a falência de soluções que visam à eliminação pura e simples do inimigo. Cada clarão lunar de bombardeio israelense sobre Gaza, cada novo avanço a ferro e fogo para tentar aniquilar os tentáculos subterrâneos do terror só aumenta o apagamento da população civil desgarrada.

Até agora, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu é o único integrante do gabinete de guerra israelense a não admitir ter falhado na proteção do Estado contra o ataque do Hamas de 7 de outubro. Os chefes das Forças Armadas de Defesa e da Inteligência Militar, o diretor da agência de inteligência Shin Bet, o atual ministro da Defesa e até mesmo seu antecessor já reconheceram alguma responsabilidade na matança de 1.400 judeus e no sequestro em mãos terroristas de outros 240. Quando pressionado, Netanyahu responde que todos, inclusive ele, deverão responder a uma futura investigação, mas que sua responsabilidade é uma só: vencer a guerra.

Sem chance. Montado num poderio bélico capaz de exterminar a liderança do Hamas e de implodir a infraestrutura terrorista no enclave, ele talvez até consiga vencer sua guerra de terra arrasada, a qualquer custo. Nessa eventualidade, terá perdido o principal: a paz. Tanto a paz interna num Israel dilacerado e órfão de sua história democrática quanto a paz externa na comunidade das nações. A História dá voltas que nem ela mesma consegue assimilar devidamente. Nesta semana, o governo da Alemanha solicitou ao governo de Israel que proteja os palestinos da Cisjordânia ocupada do surto de violência a que têm sido submetidos por soldados e colonos judeus. Repetindo: a Alemanha saída do nazismo pede a Israel nascido do Holocausto que não maltrate determinado povo.

Em meio a todo esse horror, a semana termina com Ta-Nehisi Coates e o secretário de Estado americano, Antony Blinken, constatando o óbvio. A solução futura, em algum momento, enunciou Blinken, são “dois Estados para os dois povos, o que julgamos ser a melhor garantia — senão a única — para um Israel judeu, seguro e democrático”. Que seja ainda neste decênio.

 

2 comentários:

ADEMAR AMANCIO disse...

Tomara.

Daniel disse...

Excelente texto! Os ataques de Netanyahu matam uma criança palestina a cada 10 minutos. Este canalha se apresenta como o bem contra a barbárie, mas um de seus ministros queria LANÇAR UMA BOMBA NUCLEAR EM GAZA. Israel comete CRIMES DE GUERRA em série, sendo TÃO TERRORISTA quanto o Hamas!