Correio Braziliense
A MP — filha bastarda do decreto-lei,
fartamente utilizado durante o Estado Novo e o Regime Militar — foi gerada no
seio da Assembleia Nacional Constituinte em nome da governabilidade
Diz a sabedoria do homem do interior que, com
o passar dos anos, o animal se habitua à cangalha. O velho adágio se aplica à
medida provisória, recurso antidemocrático extremo, permitido pela Constituição
para casos de relevância e urgência, ou de urgência relevante, pelo
indisfarçável caráter autoritário de que se reveste. É triste, mas, com o
passar dos anos, vamos nos habituando ao arbítrio das medidas provisórias.
Nunca é demais relembrar que são três os
Poderes da União, independentes e harmônicos entre si: o Legislativo, o
Executivo e o Judiciário, conforme prescreve o Art. 2º da Lei Fundamental.
Poderes independentes e harmônicos. Vale dizer que um não se subordina ao outro
e, entre eles, é essencial que exerçam as respectivas competências em ambiente
de respeito e harmonia, obedientes a pesos e contrapesos constitucionais.
A medida provisória — filha bastarda do decreto-lei, fartamente utilizado durante o Estado Novo e o Regime Militar — foi gerada no seio da Assembleia Nacional Constituinte em nome da governabilidade. A expressão significa, segundo o Dicionário Houaiss, "situação em que as instituições funcionam bem, existe tranquilidade política e suficiente estabilidade financeira para que o governo possa governar".
Desde a promulgação da Constituição de 1988,
o emprego de medidas provisórias, por sucessivos presidentes da República, tem
se constituído em fator de desestabilização da tranquilidade política e meio de
interferência do Poder Executivo nas atribuições do Poder Legislativo.
Ainda agora, segundo a imprensa, o ministro
da Fazenda, Fernando Haddad, torna público que se encontra em elaboração medida
provisória destinada a confrontar o Poder Legislativo. O objetivo consiste na
revogação de dispositivos da lei aprovada em 14 de dezembro, determinando a
desoneração da folha de pagamento em 17 setores da economia. Independentemente
do mérito das questões ventiladas, não se pode deixar de discutir, sob o ângulo
constitucional, o cabimento de medida provisória destinada a revogar, com uma
canetada, artigos de legislação recente, previamente discutidos por todos os
setores da sociedade.
Na hipótese, nada remota, de se aceitar que o
Poder Executivo goza da prerrogativa de legislar contra lei há poucos dias
aprovada, vetada, e cujo veto foi derrubado por quem podia fazê-lo, conforme
prescreve a Constituição, estaremos diante do caos legislativo, uma vez que
medida de caráter pessoal e autoritária se contrapõe ao direito de rejeição do
veto "pela maioria absoluta dos deputados e senadores" (Art. 66, §
4º).
Confirmada a edição da medida provisória, a
nação se encontrará diante de caso típico de crime de responsabilidade, a teor
do que dispõe o Art. 85 da Lei Superior. Com efeito, são crimes de
responsabilidade os atos do presidente da República que atentem contra a
Constituição Federal e, especialmente, contra o livre exercício do Poder
Legislativo e o cumprimento das leis, conforme determinam os incisos II e VII.
O uso abusivo de medidas provisórias, dotadas
de eficácia imediata, pode colocar em perigo a sobrevivência do Estado de
Direito Democrático. É imprescindível reação imediata e enérgica do Congresso
Nacional na defesa da sua independência, e como instrumento de restabelecimento
do tratamento harmonioso entre os Três Poderes.
Ao longo do primeiro ano de governo, no
exercício do terceiro mandato popular, o presidente Lula deve revelar que
aprendeu a administrar o país sem violar os limites constitucionais. O veto à
derrubada do veto, mediante emprego arbitrário de medida provisória, é algo que
não se coaduna com o propalado espírito democrático do presidente da República.
A desoneração da folha de pagamento de setores vitais do combalido parque
industrial, como confecção e vestuário, calçados, construção civil, fabricação
de veículos e carroçarias, atende a necessidades inadiáveis, sob pena de quebra
e desemprego generalizados.
Há décadas, o parque industrial reclama por
medidas no sentido do alívio de carga tributária, cujo peso o torna vulnerável
à concorrência predatória de países desenvolvidos e ricos, sobretudo do
Oriente. O Poder Legislativo escutou a voz da sociedade. O presidente da
República ouviu o ministro da Fazenda, cuja única preocupação é aumentar a
arrecadação, para satisfazer excessivas despesas governamentais. Usada
moderadamente, com critério e cautela, a medida provisória pode ser remédio. Em
excesso, transformar-se-á em veneno.
*Almir Pazzianotto Pinto, advogado. Foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho
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