O Estado de S. Paulo
Com sorte, pode ser que o navio não afunde, embora seja certo que dificilmente enfunará as velas
O Brasil está uma maravilha, neste início de
ano, com inflação e desemprego em queda, a bolsa subindo, PIB crescendo a quase
3% ao ano, e o Congresso aprovando a reforma tributária, saudada por quase
todos como revolucionária. E 2023 culminou com churrasco de confraternização na
Granja do Torto com a presença do presidente do Banco Central, que o presidente
Lula da Silva pouco antes acusava de sabotar a economia. Apesar das
comemorações desta semana, é difícil lembrar que, um ano atrás, o País parecia
rachado em dois extremos que se odiavam, com tentativa de golpe de Estado, as
contas públicas em frangalhos, e o Congresso mais conservador já eleito na
história, ameaçando tratar o Executivo a pão e água.
Dois fatores parecem explicar esta reviravolta. Primeiro, a entrada inesperada de grande volume de recursos, graças ao fortalecimento do mercado internacional de commodities, melhoria da economia americana e perspectiva de arrecadação extraordinária de impostos de petróleo e gás. Segundo, a grande conciliação das elites políticas, com a desmontagem da Lava Jato promovida pelo Judiciário e a entrega de grande parte do Orçamento público para o Congresso comandado pelo Centrão, iniciadas no governo Jair Bolsonaro e continuadas no primeiro ano do governo Lula.
Os processos do petrolão e da Lava Jato foram
importantes não somente por escancarar a corrupção que prevalecia nos altos
níveis de governo, mas principalmente por acender a esperança de que estava se
fortalecendo no Brasil um novo Judiciário, forte e independente, capaz de criar
padrões mais estritos de moralidade e uso dos recursos públicos.
Independentemente dos erros formais e abuso de poder que possam ter havido, o
fato é que a prevalência das doutrinas “garantistas” e o fim das condenações em
segunda instância acabou por liberar a todos e consagrar a ideia de que, no
Brasil, ninguém que tenha suficiente dinheiro e bom relacionamento será punido.
Apesar das juras, vamos ver se será diferente com os mentores da tentativa de
golpe de 8 de janeiro de 2023, nenhum indiciado pela Justiça um ano depois. É
esse Judiciário desvertebrado que agora é chamado a enfrentar a violência e o
domínio do crime organizado sobre a população dos grandes centros urbanos e
regiões de fronteira, com relações pouco claras com as oligarquias locais.
No regime democrático, o Congresso tem a
responsabilidade da aprovar o montante e o direcionamento dos gastos públicos,
e o Executivo, sua aplicação. Mas o que vem acontecendo no Brasil, com os
fundos partidários e eleitorais e emendas parlamentares, sobretudo a partir do
orçamento secreto instituído no governo Bolsonaro, é que o Congresso tem se
apossado de fatias cada vez maiores dos recursos públicos para que os
parlamentares distribuam conforme seus interesses pessoais. A isso se soma a
apropriação privada dos recursos públicos pela proliferação dos “jabutis”,
textos introduzidos em leis em benefício de grupos de interesse especiais. São
esses jabutis que deformaram a lei de privatização da Eletrobras e infestaram a
emenda constitucional da reforma tributária, criando uma infinidade de
privilégios. Uma característica deste Congresso insaciável é o poder crescente
do presidente da Câmara dos Deputados, um quase segundo-ministro que negocia
apoio ao Executivo em troca da distribuição de verbas, favores e privilégios.
Uma das principais consequências desta grande
conciliação é que a polarização ideológica, que teria dominado a política
brasileira até as eleições de 2022, parece ter arrefecido. A esperança de
muitos que apoiaram a eleição de Lula foi que ele abrisse espaço para uma
grande coalizão que pudesse levar à frente políticas sociais mais inteligentes
e as reformas políticas e institucionais que começaram a ser implementadas para
lidar com a crise de 2015 e suas causas. Mas ele preferiu tentar ressuscitar o
Lula 2, negar que o desastre de Dilma Rousseff tivesse existido, voltar às
velhas práticas e pagar o preço da governabilidade exigido pela “banda podre”
da política. Foi por isso, me parece, que ele quase perdeu a eleição, com pouco
apoio da população mais educada e dos Estados mais desenvolvidos, quando
poderia ter ganho por ampla maioria. E é por isso que suas prioridades, em
temas como políticas de renda, defesa de direitos sociais e de minorias, meio
ambiente, saúde pública, educação, habitação, etc., ficam sobretudo no nível da
retórica e na dependência das flutuações da economia internacional sobre as
quais não tem controle. Isso vale também para sua política externa, com a
grande distância entre o ativismo das viagens e declarações sonoras e a
identificação clara dos interesses do País. A grande exceção é Fernando Haddad,
que precisa matar um leão por dia, à esquerda e à direita, para tentar manter a
economia nos trilhos.
Olhando a crise profunda em que se meteu a
Argentina, temos que dar graças a Deus pela calmaria em que entramos em 2024.
Com sorte, pode ser que o navio não afunde, embora seja certo que dificilmente
enfunará as velas.
*Sociólogo, é membro da Academia Brasileira
de Ciências
Nenhum comentário:
Postar um comentário