sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Pedro Doria - Liberdade de expressão não é o problema

O Globo

Algoritmos de IA, cuidadosamente desenvolvidos para exibir propaganda, escolhem quem tem voz e quem não tem

O bolsonarismo não está mais no poder. O risco de golpe de Estado passou. Precisamos aproveitar o momento de estabilidade institucional, democrática, para discutir mais a sério a questão da liberdade de expressão. Faz parte do alicerce de qualquer democracia dar espaço muito, muito amplo ao debate. Não quer dizer que não existam limites. A Alemanha impõe limites ao nazismo — e defende esses limites com sua própria História. A conversa sobre o que, como sociedade, devemos tolerar que seja dito volta à tona à medida que tornamos a falar de regular as redes sociais.

E, no entanto, talvez seja uma conversa deslocada. Talvez o problema que as redes criam não esteja no que pode ou não ser dito. Depois de 21 anos de uma ditadura horrorosa, quando celebramos a promulgação da Constituição de 1988, poucas coisas foram mais festejadas que o artigo 5º, inciso IV, parágrafo IV: “É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. É uma cláusula pétrea logo reforçada pelo artigo 220: “É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”.

O que, afinal, mudou com as redes sociais? Não foi o fato de políticos divulgarem mentiras. Isso já havia. Tampouco foi por causa das redes que surgiram populistas — eles também já existiam. As mudanças foram duas.

Antes de a comunicação se concentrar nas redes, ela ocorria na internet descentralizada. O conteúdo não chegava a nós, nós íamos a ele. Escolhíamos os blogs que queríamos ler, os sites noticiosos. Ainda antes, no mundo analógico, cada grande cidade tinha dois jornais, umas cinco rádios importantes, mais quatro ou cinco canais de TV com muita programação local. A primeira mudança é que recebemos boa parte de nossa informação por meio de redes concentradas em três grandes companhias — Meta (Facebook e Instagram), Google (YouTube) e ByteDance (TikTok). Há outras três redes bastante menores — X, Snapchat e Kwai.

Isso é um truste de escala global — ou, ao menos, ocidental. Em todas as democracias, nos informamos por meio das mesmas três companhias que faturam em um dia mais do que alguns países produzem durante o ano.

A segunda mudança é que não escolhemos o que leremos. Programas baseados em inteligência artificial escolhem o que leremos, ao que assistiremos. Isso quer dizer que, pela primeira vez na história das democracias, nós, cidadãos, perdemos o poder de escolha sobre a informação que consumiremos. O algoritmo, esse editor mestre de todas as democracias, usa dois critérios. Um que nos agrupa segundo aqueles interesses comuns. Outro que oferece conteúdo que mobiliza nossas emoções de forma mais intensa.

Convivemos, portanto, mais e mais com quem pensa como nós e estamos constantemente mobilizados a agir contra quem é diferente. Quanto maior o envolvimento emocional, mais tempo ficamos nas redes e mais propaganda vemos.

Tudo se resume ao seguinte: algoritmos de inteligência artificial, cuidadosamente desenvolvidos para exibir propaganda, escolhem quem tem voz e quem não tem no debate público. Perdemos, como sociedade, agência na escolha de quem tem voz. Isso é novo. Se estamos expostos a mais ideias radicais, se estamos brigando mais, se estamos mais intolerantes, tudo se concentra nesse ponto. As ideias radicais já existiam, e não havia necessidade de censura. Porque as ignorávamos coletivamente. O algoritmo as impulsiona.

O discurso público já foi regulado. Foi regulado por um truste privado sem que tenhamos sido consultados. O problema não está na liberdade de expressão. Está na perda da liberdade coletiva de escolher quem é ouvido.


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