O Globo
Não foram os fatos que formaram as
convicções; foram as convicções que convocaram os fatos
Vou pedir licença ao leitor para retomar o
assunto da semana passada, com enfoque ligeiramente diferente. Creio que a
gravidade da situação no Rio Grande do Sul justifica minha insistência.
Estamos todos chocados com a profusão de conteúdos desinformativos sobre a atuação do governo na crise humanitária no Rio Grande do Sul: informações distorcidas, exageradas, retiradas de contexto ou simplesmente falsas infestaram as mídias sociais e os aplicativos de mensagens. Segundo essas mensagens, os governos federal (PT) e estadual (PSDB) não apenas não fazem o necessário, como criam ativamente obstáculos para o auxílio às vítimas das cheias, retendo doações nos centros de distribuição e impondo entraves burocráticos à doação de remédios, à operação de barcos e jet-skis ou à chegada de caminhões com alimentos. Ao povo vítima das cheias, restaria apenas recorrer aos cidadãos brasileiros que lutam como podem para contornar os obstáculos criados pelos governos (“de esquerda”). Dados colhidos nas mídias sociais e em pesquisas de opinião sugerem que esse discurso pegou.
De onde partiram essas mensagens e como
podemos lutar contra seus efeitos deletérios, que desestimulam doações e
semeiam a desconfiança nos agentes públicos que promovem os resgates?
A resposta mais comum é que se trata de uma
campanha orquestrada por políticos e influenciadores bolsonaristas para
desacreditar os governos de Eduardo Leite e Lula e
que a maneira adequada de se contrapor a essa campanha irresponsável e canalha
é produzir desmentidos rigorosos, veiculados na mídia de massa.
Não está completamente errado, mas há um
equívoco fundamental nessa abordagem. Ele consiste em supor que a opinião da
população é puramente racional e indutiva, foi forjada a partir dos fatos
apresentados: de tanto ver informações falsas ou distorcidas de que os governos
atrapalham o socorro às vítimas, o cidadão adere ao discurso antigovernamental.
Há algumas décadas sabemos que não é assim
que se formam opiniões e atitudes sobre temas carregados de afeto ou ligados a
identidades políticas. Não formamos convicção sobre esses assuntos a partir dos
fatos, mas, ao contrário, frequentemente selecionamos os fatos que respaldam as
convicções que já temos. É o mecanismo conhecido como “viés de confirmação”.
Nenhuma campanha política organizada precisa
convencer os brasileiros de que os governos não fazem o suficiente. Esse
sentimento, geralmente justificado, certamente aumentou quando uma catástrofe
de grandes proporções exigiu ainda mais ações de um governo que pouco faz ou
pouco consegue fazer. É bastante razoável supor que, antes de qualquer
exposição à desinformação no WhatsApp, a
população já estava insatisfeita e irritada com a morosidade e a ineficiência
dos governos.
Foi para respaldar essa insatisfação e
indignação com os governos que os boatos se disseminaram. Não foram os fatos
que formaram as convicções; foram as convicções que convocaram os fatos. E, uma
vez convocados, esses fatos foram produzidos. Parte deles pela confusão e
incerteza da situação, parte pela raiva do cidadão comum indignado, parte pela
militância organizada bolsonarista.
Um fenômeno social dessa dimensão não pode
ser inventado num gabinete de marqueteiro. Se houve uma campanha organizada
pelos bolsonaristas, ela apenas ajudou a dar orientação e volume a uma
disposição social que já estava lá, latente.
Por isso não devemos chegar para o povo
indignado com a ineficiência da resposta do Estado e petulantemente dizer:
— Sua convicção é baseada em fake news.
Quando dizemos isso, imaginamos contestar os
fatos que embasaram a convicção, mas, na realidade, apenas deslegitimamos a dor
e a indignação justa. A reação do interlocutor não será mudar de ideia. Será
rejeitar e afastar quem lhe desrespeita.
É preciso reconhecer a legitimidade dessa
revolta e discutir com muita consideração as evidências que ela escolheu
adotar. Esse respeito é devido não à liderança bolsonarista que dissemina a
desinformação, mas às pessoas que a adotaram.
Não precisamos deixar de contestar a
desinformação, mas precisamos contestar com postura diferente. A que temos
adotado — de portadores de uma verdade rigorosamente estabelecida com critérios
científicos e jornalísticos — não é apenas tremendamente ineficaz. É também
arrogante, presunçosa e desrespeitosa.
Um comentário:
Excelente análise, texto magnífico! Parabéns ao autor, e ao blog por divulgar esta excepcional coluna!
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