Folha de S. Paulo
Camuflagem poupa quem deveria responder por
cargos e barganhas
Sem identificação, surge uma espécie de ente
metafísico do fisiologismo
Diz-se há muito tempo que, no Brasil, não se
governa sem o centrão. Que ele é fisiológico, chantagista, faminto por cargos e
dinheiro. O que normalmente não se nota, porém, é que o mesmo jornalismo que o
fustiga em reportagens, colunas e editoriais acaba lhe concedendo o benefício
com que todo investigado sonha: proteção de identidade.
O leitor lê que "o Planalto precisa dos votos do centrão para aprovar matérias de interesse" ou que "integrantes do centrão admitem desacelerar o desembarque da gestão petista". Aprende que há ali um poder decisivo, mas mascarado por um rótulo genérico. Entende que "um cardeal do centrão" trama nos bastidores, mas sem saber se o religioso atende por PP, União Brasil, Republicanos, MDB ou até mesmo PSD. O grupo aparece como classe profissional, mas sem nome no crachá.
Levantei, ao longo de um mês, 51 menções ao centrão na Folha. Em 84% delas, centrão é apenas "o centrão", uma espécie de ente metafísico do fisiologismo, designado sem que se diga quais partidos nele se abrigam.
Mantém-se, assim, um enigma: nenhum eleitor
votou em um partido chamado centrão, mas é ele quem ocupa o noticiário, sempre
barganhando, chantageando, pressionando, quando não metido em corrupção.
Governo, base de apoio, oposição, direita são categorias que o eleitor
facilmente decompõe em siglas partidárias e nomes; mas, com o centrão, essa
operação raramente se faz.
Aliás, por hábito ou comodidade, assimilamos
de tal maneira a existência dessa nebulosa institucional que esquecemos que ela
não tem equivalente direto em outras democracias —não à toa,
"centrão" não tem tradução pronta. É, afinal, a nossa jabuticaba
institucional.
E há, claro, a cereja da camuflagem: a
elasticidade do rótulo. O PL já esteve dentro;
agora parece que está fora. O PSD às vezes é centrão, às vezes é
"centro". É uma conta conjunta em que os sócios entram e saem de
acordo com as necessidades contábeis —e reputacionais— do momento.
A lógica se revela ainda mais engenhosa
quando há escândalo envolvendo um membro do centrão. Basta que a denúncia ganhe
nome e sobrenome (geralmente os do acusado) e o centrão some na fumaça. O PP
de Arthur Lira passa
a ser apenas PP. O Republicanos responde como Republicanos. O União Brasil dá
explicações em nome próprio. E pronto: o rótulo maligno, que a opinião pública
tanto odeia, não aparece para contaminar a marca.
No dia seguinte, quando já estiver tudo
resolvido —ou devidamente engavetado—, os mesmos PP, União Brasil,
Republicanos, MDB e quem mais se pressupõe incluído no rótulo voltam ao abrigo
do guarda-chuva do centrão. Agora, não como suspeitos em um caso específico,
mas como necessidade pragmática da governabilidade. Quem se deu mal? O centrão,
entidade sem CNPJ. Ora, o centrão pode ser o vilão do dia, mas não pagará no
ajuste de contas eleitorais —pois, na urna, só aparecem partidos.
O ajuste de contas eleitoral, peça
fundamental da democracia, exige que o eleitor saiba quem fez o quê, lembre
disso na hora de votar e possa punir quem achar que merece. Mas, quando a
cobertura diária fala em "centrão", em vez de partidos, ao criticar
comportamentos, ela cria um inimigo público sem CNPJ. E ajuda a preservar
exatamente aqueles que deveriam responder por suas ações.
Ao preferir um rótulo elástico a nomes e
siglas, o jornalismo transforma vícios conhecidos em pecado sem pecadores. O
centrão pode tudo —bloquear, liberar, cobrar pedágio—, mas nunca responde na
urna porque não está nela. Já os partidos nomeados todos os dias, como PT
ou PSDB (ontem),
PL (hoje) e PSOL (amanhã),
arcam sozinhos com o custo simbólico da política real.
Se a crítica cotidiana é dirigida ao rótulo
—e não às siglas—, o rótulo absorve o dano e as siglas seguem ilesas. É como
tentar culpar o "crime organizado" sem citar nenhuma facção. Tudo
fica mais fácil de narrar —e muito mais difícil de responsabilizar.
Talvez seja pedir muito que, no debate
público, se deixe de oferecer camuflagem justamente ao conjunto de partidos
políticos que se considera a quintessência do clientelismo e do patrimonialismo
que as pessoas dizem detestar na vida pública. Mas não parece exagero pedir
que, pelo menos, o jornalismo, sempre atento ao poder dos outros, desconfie um
pouco mais do poder que sua linguagem dá aos de sempre.
Se o centrão manda tanto quanto dizem, o mínimo que a democracia pode exigir é que todos os partidos políticos sejam tratados singularmente, sem oferecer a um punhado deles um rótulo genérico com o qual se protegem dos eleitores nas urnas.

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