quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Dia da Memória das Vítimas da Corrupção, Cristovam Buarque

Correio Braziliense

É estranho criar um dia para lembrar as vítimas do comunismo na União Soviética quando, no Brasil, os comunistas sempre foram as vítimas

Ao criar o Dia da Memória das Vítimas do Comunismo, o governador do Distrito Federal se refere, provavelmente, às vítimas do regime comunista da antiga União Soviética, que desapareceram há quase meio século. Não está considerando as vítimas da Rússia capitalista na Ucrânia, nem os 6 milhões — quase todos judeus — mortos pelo regime de direita nazista na Alemanha. Tampouco considera os 1.700 israelenses mortos e os cerca de 300 sequestrados, vítimas do terrorismo do Hamas, nem os 70 mil mortos e condenados à fome por Israel no gueto de Gaza. Ainda menos, não leva em conta as dezenas de milhares de presos, torturados, exilados ou os mortos pela ditadura militar de direita capitalista no Brasil.

É estranho criar um dia para lembrar as vítimas do comunismo na União Soviética quando, no Brasil, os comunistas sempre foram as vítimas — nos 10 anos do Estado Novo e nos 21 anos da ditadura militar —, sem promover um dia em memória das vítimas passadas do regime militar e das vítimas da corrupção em nosso regime democrático.

Seria justo decretar um dia de memória pelos 400 mil mortos que teriam sobrevivido à covid-19 se o presidente daquela época tivesse o mínimo de sensibilidade e competência  —  em vez do escárnio e da estupidez com que tratou os doentes e seus familiares, recusando vacinas, zombando dos mortos, chamando-os de fracos.

O governador lembrou-se de vítimas do comunismo na finada URSS, mas não teve consideração pela memória dos brasileiros que enfrentam a tragédia da saúde pública no DF, provocada pela inoperância e pela corrupção. Apesar dos bilhões transferidos anualmente ao GDF pelo resto do Brasil, pela primeira vez na história há brasilienses indo buscar atendimento na rede pública de Goiás, porque não encontram tratamento dentro do nosso quadrilátero. É preciso um dia de memória para os que são obrigados a esse percurso e para os que sentem vergonha do estado em que a incompetência, o descuido e a corrupção deixaram o que antes era exemplo de excelência no sistema público de saúde do Brasil, com o programa Saúde em Casa.

Deveríamos ter um dia de memória para as crianças que morreram por descuido com a saúde e com a segurança da população. Nenhum dia foi proposto em homenagem às crianças assassinadas — como ocorreu com Isaac Vilhena, morto no último dia 17, aos 16 anos, entre as quadras 112 e 113 Sul. O governo do DF não sancionou uma lei criando o dia da memória dos 4 milhões de escravizados trazidos da África, nem dos nascidos no Brasil, transportados por nove meses no ventre de suas mães, tampouco de seus descendentes, que até hoje estudam em escolas-senzala. Não decretou um dia em memória dos 20 a 30 milhões de brasileiros que viveram e morreram sem saber ler e escrever devido ao descaso histórico de nossos governantes com a educação de nosso povo. Nem pensou em lembrar dos que morreram de fome em país exportador de alimentos.

Somadas ao longo da história, o número de vítimas da corrupção — seja pela escolha errada de prioridades nas políticas públicas, seja pelo comportamento dos políticos que roubam em vez de cuidar do povo — é maior do que das vítimas dos crimes do comunismo em terras distantes e tempos passados.

Devemos lembrar as incontáveis vítimas de doenças e mortes decorrentes da ausência de saneamento, por descuido, incompetência e corrupção que desviam verbas públicas; também as vítimas da falta de remédios e de equipamentos hospitalares; e as vítimas morais — os habitantes do DF envergonhados com a imagem, no dia 8 de janeiro de 2023, da inoperância de nossa segurança pública, incapaz de evitar a depredação dos prédios que simbolizam a democracia. Vergonha por não sabermos se o governo daquele momento foi incompetente ou se participou da tentativa de golpe, levando o secretário de Segurança e integrantes da nossa gloriosa Polícia Militar a perderem suas carreiras e serem condenados à prisão, enquanto seus superiores são inocentados.

Não se trata de discutir se as vítimas distantes do comunismo merecem ser lembradas no DF, mas de denunciar a hipocrisia derivada da embriaguez eleitoral de quem quer agradar aos golpistas. Precisamos de um Dia da Memória das Vítimas de Governos Locais Incompetentes, Corruptos e Embriagados Eleitorais. Uma data apropriada seria o 8 de Janeiro, dia da nossa vergonha — com os que mostraram a cara no golpe e com aqueles que se esconderam, jogando a culpa em subordinados.

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